Em entrevista ao programa Hora da Verdade, uma parceria da Renascença com o jornal Público, o Diretor Nacional Adjunto da PJ admite que o número reduzido de casos de abuso sexual de crianças de que a Igreja Católica Portuguesa diz ter conhecimento coincide com a realidade constatada pela Polícia Judiciária. Carlos Farinha revela que são muito poucos os inquéritos criminais abertos até agora e que em nenhum dos processos conhecidos pela PJ sentiu que houvesse tentativa de silenciamento por parte da hierarquia da Igreja Católica. Reconhece no entanto que a PJ nunca recebeu qualquer denúncia por parte dessa hierarquia.
Carlos Farinha tem expectativas baixas sobre o trabalho da Comissão Independente cuja composição será hoje conhecida, por causa do problema da prescrição. Embora a Conferência Episcopal tenha anunciado uma investigação sem janela temporal, lembra que ,para efeitos penais, o direito da vítima a apresentar queixa termina cinco depois da sua maioridade. Defende no entanto que, embora esses casos não possam já ser julgados e punidos pela direito penal, é importante que do ponto de vista sociológico se faça a desocultação de eventuais crimes.
-2021 está quase a terminar….É possível fazer já um balanço da violência sexual contra crianças? Vamos ter um ano recorde de casos?
Provavelmente não. É ainda precoce fazer o balanço. E sabemos que não podemos comparar 2021 com 2020, porque 2020 foi um ano atípico. As tendências destes fenómenos criminais que se dão muito no contexto da proximidade - familiar, interpessoal - foram de alguma forma perturbadas.
-Nos primeiros seis meses do ano foram registados 1390 crimes pela Judiciária. Isto não é um recorde?
Poderá ser, sendo que normalmente o primeiro semestre é ligeiramente superior ao segundo. Mas não nos devemos focar demasiado na questão estatística, porque os números são as situações que o sistema conhece - e não significa que o fenómeno esteja a aumentar exponencialmente, pode ser apenas a sua visibilidade que está a crescer.
-O confinamento dentro de casa pode ajudar a explicar este aparente aumento, pelo facto de as crianças terem ficado mais expostas aos abusadores com quem moram?
O confinamento trouxe-nos uma realidade indiscutível, o aumento da criminalidade sexual online. Por outro lado, condicionou o espaço para a ocorrência de muitas situações, ainda que por exemplo a nível da violência doméstica - da qual a criminalidade sexual não pode ser completamente dissociada - tenha havido algum aumento de denúncias. Os números de 2020 não são, por via do confinamento, elucidativos da tendência da realidade. Observando esta temática com alguns anos de distância, verificamos que era suposto - depois da censura social transversal que adveio do processo Casa Pia, das alterações legais que ocorreram e de toda a especialização e formação de todas as instituições que interagem com este fenómeno - que os números fossem menores, e que não se mantivesse esta tendência crescente relativamente estável.
-O que falhou?
O que tem falhado é a existência de crimes. Depois há margem de melhoria na organização das respostas, na articulação entre as diferentes instituições chamadas a intervir - sejam as da investigação criminal, sejam as de prevenção, as de proteção de menores ou o Ministério Público.
-Não há também uma maior exposição das crianças por via dos pais que publicam de forma sistemática fotos dos filhos nas redes sociais?
Por vezes a atração das novas tecnologias reduz um pouco a preocupação das pessoas. Fazemos coisas nas redes sociais que não fazemos no dia-a-dia nas relações interpessoais. Há alguma desinibição. Agora o que constatamos também é que, ao invés do que se passava há uns anos, em que a criminalidade sexual ocorria muito em contexto intrafamiliar ou de proximidade, hoje isso aparece também ligado a outras formas de expressão, online. Dito de outra forma, hoje um pai abusador muito provavelmente também cultiva a pornografia infantil ou eventualmente até expôs online imagens da sua privacidade. E isso também abrange as estratégias de abordagem de convencimento, uma vez que parte dos abusos incluem não violência física mas sedução, encantamento da criança.
-O abusador dos dias de hoje tem um perfil diferente do de há 15 ou 20 anos?
O abusador do início do século tinha um sentimento de posse em relação à sua descendência - a maior parte das vítimas era do sexo feminino e os abusadores do masculino. Eram reminiscências do pensamento social dominante. Hoje este criminoso é diferente: mais tecnológico, está associado a outro tipo de espaços, de lógicas e de códigos de comunicação.
-Segundo revelou a Comissão Europeia, o número de casos de abuso sexual sobre crianças aumentou no espaço europeu durante o confinamento. Como é que nos comparamos com os outros países europeus? Estamos entre os países com mais casos?
Os rankings não são muito significativos, porque nunca podemos perder de vista alguma transversalidade do fenómeno - uma pornografia alemã continua a ser a mesma pornografia em Portugal. Por outro lado, não nos podemos esquecer que qualquer imagem pornográfica é a representação de uma pessoa concreta, a quem algo de abusivo aconteceu, de lesivo. A pornografia não é uma mera questão documental. Em termos estatísticos estamos em valores muito próximos daquilo que é a correspondência dos países europeus em matéria de criminalidade sexual online. Por outro lado estamos relativamente bem vistos no esforço que tem havido para a detecção e o combate ao fenómeno. Recentemente a comissária europeia dos assuntos internos, na apresentação do relatório de criminalidade organizada, elegeu como um dos oito temas preocupantes a criminalidade sexual envolvendo a exploração de crianças e jovens. Na sequência disso têm-se desencadeado vários projectos, nomeadamente a criação de um centro de prevenção europeia - a pandemia tem-no dificultado -, possivelmente sediado em Portugal.
-Mas isso já é certo?
É uma negociação com probabilidade elevada.
-As leis portuguesas permitem punir com efetividade os predadores sexuais de menores?
Eu diria que sim, que o problema não está propriamente na lei, mas na sua aplicação. Nós nunca sabemos se as cifras que temos estão próximas ou distantes da totalidade do fenómeno, mas podemos tentar percebê-lo. Criámos recentemente na Judiciária um observatório, uma estrutura relativamente informal, para tirarmos algumas ilações relativamente às tendências. E desde logo, se as sinalizações de crime sexual o ocorreram próximas do evento ou tendencialmente mais próximas e com origens diversificadas - não só no seio familiar como também na escola, no sistema de saúde - podemos concluir com algum grau de segurança que nos estamos a aproximar da dimensão do fenómeno. Isto é, que estamos a reduzir as cifras negras. No entanto, repito, os tais oito crimes por dia (que deverão totalizar cerca de dois mil crimes anuais) continuam a ser evidências de uma realidade com uma dimensão bastante elevada.
-Os tribunais interpretam bem a lei quando aplicam penas suspensas à maioria dos predadores, respaldados no facto de o quadro legal prever essa possibilidade para os casos menos graves e em que os abusadores não são reincidentes?
No plano policial nós estamos mais preocupados em aumentar a qualidade investigatória. Porque as decisões judiciais podem ser boas ou más, mas dificilmente serão boas se houver uma investigação insuficiente. A criminalidade sexual pode ser mais ou menos sancionável em função da idade da vítima, dos meios empregues e do agressor poder ter-lhe transmitido uma doença sexualmente transmissível. Ora bem, isto significa que a boa aplicação da lei pressupõe o conhecimento de todos estes factores. E às vezes não se consegue apresentar todos os elementos que constituem o crime.
-Então o problema está na investigação e não nas decisões dos tribunais?
A lei tal como está parece-nos suficiente. A sua utilização quer na investigação quer pelo sistema processual em termos globais é que tem margem de progressão.
-E a Polícia Judiciária tem meios para isso? Porque a falta deles é crónica.
É uma coisa mais ou menos crónica em várias instituições da justiça, ou pelo menos apregoada como tal. Temos necessidade de reforçar os nossos meios, e por isso mesmo há processos de formação e de recrutamento em curso. Mas também nos preocupamos com a especialização dos investigadores.
Temos aqui um problema que é o tempo, factor de desculpabilização que promove o apagamento judiciário. A prescrição ocorre quando o sistema acha que já não tem legitimidade para intervir. Por outro lado, o tempo é inimigo da qualidade investigatória: os relatos tornam-se menos precisos e mais difusos, a possibilidade de recolha de indícios e vestígios reduz-se. O que tem acontecido noutros países é que denúncias que já não podem ser objecto de sanção penal, por ter passado demasiado tempo, têm desencadeado mecanismos de censura e repúdio social. A nossa lei tem um regime especial para crianças e jovens: o tempo de prescrição nunca se pode esgotar sem passar determinado número de anos sobre a maioridade da vítima. O que faz com que uma criança abusada nos primeiros três anos de vida possivelmente só verá esses crimes prescrever quando fizer 23 anos.
-A dissolução do Parlamento deixou pelo caminho a intenção de fazer aumentar esse prazo até as vítimas perfazerem os 50 anos de idade. A aprovação desta lei traria alguma vantagem à investigação criminal?
Há até países em que estes crimes são imprescritíveis, desde que a vítima esteja viva. O que aqui se põe é o custo-benefício da eficácia da investigação: em tese, quanto mais tardia ela for menor é a sua probabilidade de êxito. Mas pode suceder que uma denúncia antiga traga associada imagens ou registos fonográficos que afaste esse problema. Prolongar a possibilidade de denúncia até aos 50 anos é uma ponderação que diz respeito ao legislador, não gostaria de me pronunciar sobre isso.
-Acha que a igreja portuguesa tem tentado silenciar esta realidade?
Não tenho nenhum dado que me permita apontar nesse sentido. Tivemos até poucas investigações com origem no contexto religioso. E esta é uma realidade que a nossa sociedade silenciou durante muito tempo. Por outro lado, à partida não acreditamos em determinadas realidade senão quando somos confrontados com as provas da sua existência.
-Isso significa que a hierarquia da igreja católica poucas ou nenhumas vezes foi ter com a Judiciária para denunciar casos deste género?
Normalmente estas situações não são denunciadas pela hierarquia da igreja católica, que provavelmente até terá só um conhecimento posterior das mesmas. Elas têm chegado ao nosso conhecimento através das vítimas ou dos seus familiares.
-A Judiciária tem poucos inquéritos abertos sobre este fenómeno. O que justifica haver tão poucas denúncias? Em França, segundo um relatório sobre o tema, houve 216 mil vítimas de abuso nos ultimos 70 anos.
Temos uma de duas hipóteses: ou temos pouco conhecimento do que se passou, ou passou-se pouco. É nesta altura difícil ter uma ideia fechada sobre se estamos de um lado ou doutro dessa realidade. É preciso uma congregação de intenções de desocultação, fazer algum trabalho de estudo no plano sociológico sobre o que se terá ou não passado.
-Acha que os pais estão pouco alerta para estes fenómenos?
Costumo usar o exemplo de um fado da Amália que dizia "Madrinha casai-me com Pedro gaiteiro, já tenho 13 anos que os fiz por Janeiro". E ninguém tinha qualquer tipo de juízo de censura perante esta lírica, que correspondia àquilo que hoje é um crime sexual ou um casamento precoce ou forçado.
-Como encara a entrega de investigações de peso pelo Ministério Público à PSP e à Autoridade Tributária, em detrimento da Judiciária? Além da Operação Marquês, temos agora os casos do futebol envolvendo Luís Filipe Vieira e Pinto da Costa
Relativamente ao crime económico não podemos escamotear que em determinados momentos houve provavelmente insuficiência de resposta por parte da Judiciária, além de ter podido haver entendimentos questionáveis. O que pretendemos é criar condições para que não haja necessidade de o Ministério Público delegar competência investigatória noutro órgão de polícia criminal no âmbito da competência que o legislador reservou à Judiciária. Para que assim seja, existe um esforço de formação e de melhoria de meios. Teremos 270 novos inspectores em 2022, o que corresponde a quase 30% do total de investigadores que temos.
-Quais são os principais problemas com que se confronta a Judiciária?
São os relacionados com os meios e também os que resultam das dificuldades do exercício da sua competência reservada. Há determinado tipo de criminalidade que se tornou muito mais sofisticada e exigente do ponto de vista pericial e do seu entendimento.
-Pode dar exemplos concretos?
A criminalidade associada por exemplo à actividade bancária, à contratação pública, ao exercício de funções públicas exige um conhecimento acrescido para se poder investigar. E ainda há a criminalidade assente no ódio, contra minorias - são novos problemas que exigem novas capacidades de entendimento da sua dinâmica.