De que forma se poderá normalizar a anormalidade? Eis a pergunta que domina os nossos dias, em Portugal e no mundo inteiro neste final de 2021. Há um ano, com a chegada das primeiras vacinas, gerou-se uma irreprimível onda de alívio e de entusiasmo, celebrando o fim da pandemia de Covid, enterrando as más memórias da primavera e do outono de 2020. Dali a dias, em janeiro, a terceira vaga demonstrou que o pesadelo não acabara. Entretanto, e consoante os especialistas de saúde e os matemáticos de serviço, já vamos na quarta ou na quinta vaga, isto se a progressão da estirpe Ómicron (ou de outras variantes novas) não nos conduzir da quinta para a sexta e etc. vagas.
Clama-se muito contra os negacionistas, que se comportam como os automobilistas que não usam cinto de segurança, alegando que o dito lhes coarta os movimentos e a liberdade, mas não reconhecendo que, se tiverem um acidente, ele poderá ser mais grave e mais dispendioso para todos. Esta denúncia é válida porque, de facto, quem se recusa a tomar a vacina anti-Covid representa um perigo de contágio e dano maior para os que o rodeiam. E, se lembrarmos o famoso Boletim de Vacinas, recordação de infância que todos temos numa gaveta, ninguém nunca se queixou de que cumprir o plano nacional de vacinação ofenderia a liberdade própria ou alheia. A vacinação anti-Covid não suprime a pandemia, mas minora - os números confirmam-no - a incidência de doença grave, a sobrecarga nos hospitais e, por essa via, a capacidade de o SNS alocar recursos a todas as outras doenças não-Covid.
Mas há uma outra, e muita mais difusa, classe de negacionistas - no fundo, (quase) todos nós, que queremos, e bem, prosseguir as nossas vidas, fazer o que fazíamos, poder pensar, trabalhar, conviver e prosperar como até 2020. Nós não negamos que haja pandemia; no entanto, e sob pena de lotarmos as unidades de psiquiatria, recusamo-nos a não viver. A geração que passou pela “Gripe Espanhola” de 1918-1920 (sim, durou dois anos – haja, portanto, esperança), sobreviveu-lhe, e vinda de uma Grande Guerra de quatro anos, física e mentalmente muito mais debilitante.
Suspender vidas, famílias, convívios, afetos, aprendizagens, empregos, negócios, viagens - tudo o que a Covid afeta - tolera-se numa emergência, a da primavera de 2020, quando se estava perante o susto e o desconhecido. Quase dois anos depois, o caminho da vacinação é um sucesso e é a via para normalizar a anormalidade. A inoculação de mais de 85% da população portuguesa com duas doses (ou toma única), muito competentemente realizada sob a liderança fardada do novo D. Sebastião presidenciável - o Almirante Gouveia e Melo - foi um enorme êxito, de cuja continuação há que cuidar. Porque depois da 3.ª toma virá a 4.ª, e a vacina anti-Covid vai ter de ser comunicada, em pedagogia cívica, como um ato doravante anual, ou semestral, como quem entrega o IRS ou paga as prestações do IMI. Embebida no quotidiano, não custa, e prevenir, mais do que tratar, é a única forma de transformar a epidemia numa endemia. A gripe sazonal é uma endemia que mata, muitas vezes, mais do que a Covid; e não há histeria, nem aproveitamento político, com os seus números, a não ser para o cidadão apartidário ter a convicção de que o sistema de saúde precisa de ser melhor apetrechado. A Covid testa permanentemente a resistência do país. A melhor forma de a normalizar também passa por manter e melhorar a planificação política para lidar com as suas flutuações. Veremos quem, e como, quererá falar disto na campanha eleitoral confinada de janeiro próximo. Um bom 2022 passará por aí.