O que vai sobrar dos média depois da pandemia?
05-04-2021 - 08:00

Na semana em que a Renascença completa 84 anos, olhamos para várias áreas da sociedade procurando perceber os novos caminhos que, como sociedade, estamos a percorrer. Nesta segunda-feira, apontamos o foco para duas áreas, no âmbito do digital: para o teletrabalho, e para a forma como vai afetar a relação com o emprego; e para o futuro do jornalismo, após um ano de grande exigência, mas também de grandes problemas financeiros.

Os média nacionais tiveram um papel vital no último ano, ajudando-nos a perceber as profundas alterações na vida individual e comum. Fizeram-no, quase todos, partindo de situações de enorme fragilidade em termos de recursos. E, salvo uma mão cheia de exceções, fizeram-no bem, com base no enorme empenho de centenas de profissionais (muitos com vínculos precários e a maior parte com salários muito modestos). Diria até que, nalguns aspetos, nunca teremos tido – nos últimos anos - um jornalismo tão atento à diversidade do país, à vida concreta das pessoas e aos temas que realmente lhes importam.

Um ano depois, porém, percebemos que os investimentos publicitários caíram entre 25 e 40 por cento e percebemos também que o aumento de assinaturas digitais de alguns jornais e revistas esteve longe de ser suficiente para equilibrar as perdas resultantes da quebra de vendas de papel.

Relatórios recentes sobre os efeitos da Covid 19 no sector – nacionais e internacionais – dizem quase todos que algumas das mudanças de que o próprio jornalismo foi parte ou testemunha poderão ter uma existência para lá da pandemia, alterando comportamentos, consumos e expectativas. O trabalho remoto, a relação com múltiplos ecrãs, a transferência do foco de interesse para ambientes virtuais, a centralidade do indivíduo na gestão dos conteúdos (o que eu quero, quando eu quero, onde eu quero) seriam realidades já conhecidas em 2019, mas a sua presença tornou-se agora central.

Que Jornalismo deverá, então, existir depois de tudo isto?

Um trabalho recente do Nieman Lab (Universidade de Harvard) recolheu opiniões de vários especialistas sobre esta mesma questão e, embora seja importante salientar que a realidade referência é a norte-americana e não a nossa, resulta claro que se vai pedir ao jornalismo que valorize mais a produção de informação relevante para as audiências e que valorize menos uma ‘forma de fazer’ apoiada numa frágil perceção de equilíbrio. O exercício dessa quase ‘regra de ouro’ da profissão – ouvir as partes - permitiu (e permite) que o jornalismo dê palco a figuras sem credibilidade, a teorias conspirativas, a visões ‘alternativas’ sobre a Ciência, mas permite também a normalização coletiva de comportamentos como o da Nike que, por exemplo, paga menos em impostos federais do que custa um normal par de calçado que vende. Todos percebemos no último ano – talvez como nunca – como a promoção de discursos não factuais, assentes em mentira ou promotores de interesses privados em detrimento do interesse público são socialmente danosos e, em situação críticas, amplificam o que já seria sempre uma catástrofe.

Como escreve no mesmo documento Candis Calllison, professora da Universidade de Columbia, já não chegará ao jornalismo dar conta dos efeitos das crises – como a pandemia ou a situação climática – mas será necessário identificar e expor as condições sociais, políticas e económicas que amplificam estes fenómenos: “os jornalistas vão precisar de olhar para os sistemas, os contextos e a ‘ordem social’ como nunca fizeram no passado”.

Voltando a Portugal e pensando num cenário pós-pandemia, com um país em recuperação lenta e penosa, enfrentando situações de rutura social que já se percebem e adivinham, seria também necessário um Jornalismo transparente, diverso, atento e empenhado. Capaz de acompanhar com rigor e detalhe a aplicação de fundos públicos e privados, capaz de assinalar falhas graves e de nos dar contas de histórias de recuperação e superação. Capaz de apontar desigualdades inaceitáveis e de nos ajudar a acabar com elas.

O que teremos, porém, é um panorama mediático ainda mais frágil. Empresas com mais problemas financeiros, com menos jornalistas, a quem todos exigimos ainda mais. E – se possível – sem pagar por isso.

A situação, que era crítica em 2019, pode redundar, a muito curto prazo, num real empobrecimento do pouco que ainda temos. Empresas inteiras podem desaparecer ou reduzir-se a uma expressão residual e, se nos afastarmos do Litoral, ganhará ainda mais força a expressão de ‘desertos noticiosos’.

Creio que estará mais do que na altura de o Estado considerar o Jornalismo como um bem público e de agir em conformidade. Este é um tópico naturalmente sensível (quando se escreve ‘dar atenção’ alguns só conseguem ler ‘aumentar o controle’) mas o Estado poderia agregar esforços para a criação de uma estratégia concertada de valorização do lugar social dos média, à semelhança do que fez recentemente, por exemplo, o Parlamento do Reino Unido, com o trabalho “Breaking the News? The Future of UK Journalism”. Entre as 35 recomendações dos parlamentares britânicos pedem-se esforços – a vários níveis – em termos de reforço da Literacia Mediática, assinala-se o papel equilibrador do prestador de Serviço Público, pedem-se medidas de estímulo da diversidade (na criação de projetos jornalísticos mais também no acesso à profissão), mas pede-se também trabalho em enquadramentos legais que protejam as empresas jornalísticas (à semelhança do que aconteceu na Austrália) e o fomento de uma plataforma comum de financiamento – público e privado – da atividade.

Não é muito comum em Portugal planear para o que vem a seguir. Se não o fizermos com o Jornalismo podemos não gostar do que nos vai sobrar.


Luís António Santos, professor na Universidade do Minho