Ana Paula Prates é directora de Políticas Públicas no Instituto Talanoa, um "think thank" brasileiro para as questões climáticas e esteve na última Conferência da ONU, em Lisboa, para os Oceanos.
Há quase 30 anos que trabalha em políticas de conservação de biodiversidade costeira e marinha e tem um conhecimento aprofundado sobre os desafios globais, mas também regionais da preservação desse património ecológico. Em entrevista à Renascença, registada à margem desse evento, esta investigadora diz ser essencial definir metas de conservação globais na Convenção de Diversidade Biológica para que o Oceano possa ser defendido também em alto mar.
Quão importantes são os compromissos voluntários de criar 30% de áreas marinhas protegidas até 2030?
É importante resgatar a saúde dos oceanos para que estes nos ajudem a mitigar os efeitos das alterações climáticas. As áreas marinhas protegidas minimizam os problemas com a pesca e excluem a mineração e a poluição. Há quem pense que essa é uma proporção insuficiente, mas seria maravilhoso chegar a essa percentagem a nível global. Estamos muito atrasados nesse objetivo e penso que pode não ser possível alcançá-lo até 2030, até porque ainda não conseguimos esse acordo em sede da Conferência para a Diversidade Biológica (CDB) que tem Conferência das Partes (COP) agendada para Dezembro.
Alguns países continuam a bloquear essa meta global, querendo apenas um objetivo nacional, como é o caso do Brasil. O acordo alcançado na Organização Mundial do Comércio para reduzir subsidios que incentivem a sobrepesca e a pesca ilegal foi muito importante. São subsídios perversos e representam um problema sério no Brasil. Esse acordo foi muito bom, espero que seja cumprido.
Há muitos anos que esperamos por um tratado do alto mar. Quão urgente é esse tratado?
É extremamente urgente e estamos também atrasadíssimos. Na Rio+20, em 2012, foi definido um prazo de dois anos para chegar a esse tratado. Dez anos depois, ainda não chegamos a esse tratado e também não estou otimista. Se não aprovarmos essa meta global de 30% de áreas marinhas na CDB, o tratado já vai nascer vazio, sem metas. Fechar primeiro um tratado e só depois discutir as metas significar adiar ainda mais anos.
Como vê a posição do Brasil nesse processo?
O Brasil apresentou-se muito aquém do que poderia fazer na Conferência dos Oceanos da ONU em Lisboa, apesar de termos muitos brasileiros em eventos paralelos. O Brasil não apresentou nenhum tipo de compromisso voluntário e apenas organizou um evento paralelo com a demonstração de uma aplicação sobre lixo no mar. Temos um potencial enorme de conservação da biodiversidade marinha e costeira no Brasil. Temos 26,3% de áreas marinhas protegidas, criadas em 2018. De lá para cá não criamos nenhuma área adicional. É verdade que até estamos mais ou menos bem na percentagem dessas áreas, mas é preciso preservar ainda muitas áreas e sobretudo implementá-las.
Estamos também atrasados em planeamento espacial marinho, que foi um dos compromissos voluntários do Brasil em 2017 para ser feito até 2020. A falta de planeamento pode criar problemas no quadro da descarbonização, uma vez que há muitos projetos de energia eólica que estão a ser lançados no mar e também o transporte marítimo está a ser incrementado. Tudo isso é muito danoso para a biodiversidade. Além disso, estão a ser oferecidos novos blocos de exploração de petróleo em zonas com biodiversidade sensível além do pré-sal do Brasil.
Os países integram-se por norma em blocos regionais nas negociações globais. A América do Sul tem duas frentes oceânicas. Existem entendimentos regionais dentro do mesmo continente como plataforma de pressão para a defesa de áreas geograficamente próximas?
Não, temos carência de organismos mais regionais no Atlântico Sul, sobretudo na área da pesca. Isso tem a ver com históricos problemas de soberania e esses organismos fazem falta. Era importante ter um bloco mais unido no Atlântico Sul, principalmente entre África e o outro lado. Existem projetos pequenos mas não são suficientemente fortes para nos ajudar em posições internacionais.
O potencial dos oceanos na discussão climática é suficientemente aproveitado? Olhamos para o Acordo de Paris ou para a COP de Glasgow em 2021 e não temos quase nada sobre isso. Olhando para a COP do Egipto em Novembro, onde podem entrar os Oceanos nesta equação?
Essa é uma grande questão que eu própria, pesquisadora na área dos oceanos, não consigo entender. Para mim, ao falar de clima, temos que automaticamente falar de oceanos, que absorve tudo o que está a ser emitido. Não consigo entender porque é que os organismos internacionais não falam disso.
De certa forma até compreendo que assim seja, uma vez que até agora o oceano foi o grande "amigo" da Humanidade, absorvendo todas essas emissões "em silêncio". E agora vai se transformando em inimigo com o aumento do nível do mar. Espero que a partir de agora, com as coisas a "apertar", com a água subindo, que se comece a falar mais disto.
Em Glasgow, pela primeira vez, os oceanos chegaram ao documento final de uma COP, que incluiu até um diálogo sobre os oceanos durante três horas. Espero que as coisas comecem a andar.
Pode dar-nos exemplos da forma como os oceanos podem minimizar o impacto das alterações climáticas?
No Oceano, temos ecossistemas de "carbono azul" como os manguezais ou as algas marinhas. Isso tudo tem que ser restaurado e recuperado para ajudarmos o planeta. Temos que manter o oceano saudável para ele continuar a absorver o carbono. No entanto, há a questão do aumento do nível do mar.
O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas mostra-nos que, independentemente de pararmos de emitir hoje gases com efeito de estufa, o nível médio da água do mar vai continuar a subir 1,5 metros até 2100. Isso significa que temos que nos adaptar. Com a inércia do sistema oceanico, o calor já foi absorvido.
O planeta só tem um Oceano, embora chamemos por nomes diferentes por bacia. Uma circulação completa pelo Oceano demora aproximadamente mil anos, o que revela uma inércia muito grande do sistema oceânico. Por isso o calor já foi absorvido e isso aumenta a desoxigenação, acidificação e aumento do nível do mar.
É realmente possível conciliar a atividade económica com a preservação dos oceanos?
Sim, temos apenas que mudar o paradigma. Não dá para continuar o consumo como temos hoje. E temos que apostar no planeamento para que possamos, por exemplo, pescar ou implementar uma eólica "offshore" numa zona que não tenha tanto impacto para o oceano.