Meu caro,
gostava de partilhar consigo os meus dilemas perante este vírus que nos trata de maneira diferente: tal como a esmagadora maioria da população, eu estou fora do grupo de risco; o meu caro amigo, ao invés, tem um alvo nas costas. Perante outros vírus mais mortíferos, nós seríamos iguais, eu poderia morrer tal e qual como o meu amigo. Só que este vírus, sendo menos mortífero, espalha-se mais e consegue chegar a mais corpos frágeis como o seu. É esta duplicidade etária que tem dificultado o enfoque moral da sociedade perante a pandemia.
Eu, por exemplo, já fui criticado por ter cão e por não ter cão. Quando Ramalho Eanes, afirmou que um velho deve dar o seu ventilador a um homem mais novo, eu reagi de imediato: esse acto, por muito bravo que possa parecer, tem fraca validade moral. Uma vida é uma vida. Um velho de 80 anos tem uma vida tão digna como um homem de 40 ou 20. O critério ético não pode ser a idade, tem de ser a condição médica. Vamos imaginar um cenário em que eu tenho várias doenças graves; neste cenário, os meus 41 anos altamente debilitados poderiam levar os médicos a dar o meu ventilador aos seus 70 anos altamente saudáveis, porque o meu caro amigo teria mais probabilidades de sobreviver. Quando escrevi isto, fui criticado por pessoas que acham que uma vida aos 18 anos deve ter prioridade sobre uma vida aos 80.
Mas, do outro lado, já fui criticado por me limitar a salientar a natureza específica deste vírus: mata sobretudo idosos em idade avançada e já dentro da esperança média de vida. Repare: a média de óbitos por covid-19 em Portugal é 81 anos; a esperança média de vida em Portugal é de 81 anos. Ou seja, este vírus vem acelerar uma morte natural que iria suceder em breve por esta ou aquela razão. Eu não estou, como já lhe disse, a desvalorizar a vida dos velhos. Estou é a aceitar a inevitabilidade da morte natural. Bem sei, bem sei: esta sociedade, como já escrevi aqui dezenas de vezes, não sabe lidar com a morte natural que escapa ao poder humano.
Seja como for, é preciso ter noção das diferenças: uma coisa é um vírus que mata crianças, jovens, adultos e velhos independentemente da condição médica; um vírus que cria a morte do nada até em corpos saudáveis e jovens. Isto, sim, seria o fim do mundo. Outra coisa é este vírus “relativamente bonzinho” que vem acelerar a morte natural de pessoas com 80 e 90 anos e já muito debilitadas, deixando de lado crianças, jovens e adultos. Médica, política e moralmente, há aqui uma enorme diferença. E o #ficaremcasa nasce de um pânico que só seria aceitável perante um vírus que matasse toda a gente a eito. Não é o caso.
Isto serve para quê? Para calibrarmos a resposta. Eu sei que não posso ser filho e sobrinho, não posso ver os meus pais e tios. As minhas filhas não podem ser netas, não podem ver os avós, mas porque é que não podem ser alunas e porque é que os pais deste país não podem voltar ao trabalho para salvar literalmente as suas vidas da destruição económica e mental?
O primeiro-ministro diz que não quer fomentar o “estigma” contra os velhos e que, por isso, recusa colocar apenas os mais velhos na exigência do confinamento. Isto é um absurdo. Isto não é gerir a pandemia, é gerir sensibilidades. Mas qual “estigma”, meu caro? Estamos a falar de uma realidade objectiva e não de um preconceito subjectivo. Este vírus mata sobretudo pessoas com 70, 80 e 90 anos, ponto final. São essas as pessoas que devem ficar em quarentena. Repare que isto não quer dizer que aceito o confinamento coercivo dos velhos. Acho que os idosos devem ser tratados como adultos. Conhecem os riscos e devem ter a liberdade para enfrentar o risco, até porque o isolamento pode ser muito pior do que o vírus. Muito pior. Mas o respeito pela sua liberdade individual, meu caro, não deve travar um discurso político que isole com clareza a situação: estamos a viver uma situação delicada porque o vírus é complicado para pessoas idosas e doentes.
Quando digo que as escolas e empresas até 50 pessoas deviam ter ficado abertas, quando digo que o problema são os lares de idosos e não as escolas, quando digo que a quarentena deve ser só para os idosos, eu não estou a estigmatizá-lo, estou a protegê-lo do vírus, de um lado, e da crise económica, do outro lado. Se a quarentena fosse apenas para os mais velhos, nós conseguíamos proteger os mais frágeis, não atiraríamos milhares ou milhões para o desemprego e criaríamos mais rapidamente a imunidade de grupo, a necessária meta, porque a utopia da “vacina para breve” é isso mesmo, uma utopia, uma falsa esperança.
Não lhe roubo mais tempo. Termino só com isto: não se trata de estigma, meu caro, mas sim de ciência e de amor.
Um abraço,
Henrique Raposo