Os adultos devem proteger-se contra o novo coronavírus, mas deixar as crianças brincar ao ar livre, em contacto com a natureza, pois o aprisionamento a que têm sido sujeitas vai ter consequências a vários níveis.
O alerta vem de Carlos Neto, professor da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, que acaba de lançar o livro “Libertem as crianças – A Urgência de Brincar e Ser Ativo”.
“As crianças não se mexem, não têm autonomia, não têm participação e eu acho que temos de criar aqui uma espécie de pacto de sustentabilidade para preparar estas crianças para uma sociedade futura, que é uma sociedade baseada na inteligência artificial, mas também na preservação da natureza”, afirma à Renascença.
Na opinião deste que é considerado um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira e do jogo, e da sua importância para as crianças, não podemos viver no medo.
“Temos de criar condições para que as crianças sejam resilientes, tenham capacidade adaptativa, que sejam amigas da natureza, aprendam a ser críticos e inteligentes, mas também a ter uma boa regulação emocional, serem criativos, lidarem com situações não lineares” – isto, além de criá-las “para uma sociedade em que seja possível ter capacidades de aprendizagem múltiplas e relações sociais consistentes”.
Convidado do programa As Três da Manhã, Carlos Neto critica aquilo que chama “a pandemia do medo”.
“É pior que o vírus e, em relação as crianças, obviamente que a sua saúde mental e física está em causa”, avisa.
“É preciso que haja consciência, ao nível das políticas públicas e das tomadas de decisão governamentais, de que este aprisionamento do corpo vai ter consequências”, acrescenta, lembrando que, durante o confinamento, “as crianças passaram cerca de 80% de atividades sedentárias e em frente ao ecrã”.
“Isso significa que estamos a criar uma situação muito grave no que respeita essencialmente às competências motoras – ao que chamo literacia motora, física”, alerta.
Mas como deixar as crianças brincar na rua em tempo de pandemia? “Tendo consciência de que o bom desenvolvimento das crianças implica um contacto com o risco, um confronto com o risco”, responde o especialista.
“Sem confronto com o risco não há segurança. Não há risco zero, o risco tem de fazer parte da vida das crianças e os pais não podem ser tão super protetores e ter tantos medos na cabeça”, apela.
Tendo em conta que, segundo os estudos já realizados, o nível de transmissibilidade do novo coronavírus “é muito baixo” nas crianças”, os adultos devem “dar-lhes liberdade” para brincar, em vez de estarem confinadas na sala de aula, completamente sentados, quietos e calados”.
“Os adultos têm de se proteger”, mas as crianças devem brincar.
“Eu decreto o estado de emergência de brincar ao ar livre, porque é fundamental para que as crianças ganhem resiliência e capacidade de imunidade”, insiste Carlos Neto, para quem a “a escola tem de mudar para um novo paradigma, para uma nova forma de mobilizar as crianças para terem uma preparação para o futuro”.
“Brincar e ser ativo é o melhor instrumento ancestral que temos ao nosso dispor” para tal, frisa.
Em 2015, Carlos Neto pôs o país a falar da importância da brincadeira e da atividade ao ar livre ao dizer que “estamos a criar crianças totós". Agora que a pandemia impõe ainda mais restrições à liberdade de brincar e ao convívio, o professor da Faculdade de Motricidade Humana defende que as crianças precisam de mais autonomia.
“Nos estudos que temos feito, as crianças portuguesas só por volta dos 13 anos é que começam a andar a pé, de transportes públicos, enquanto nos países do Norte da Europa isso se faz aos 5/6 anos de idade. Há uma assimetria entre Norte e Sul que não tem justificação”, defende.
Se tivesse de convencer um pai a deixar um filho brincar mais na rua, Carlos Neto dir-lhe-ia: “vire-lhe as costas e deixe-o em paz. Brinque com ele. Brinque em segurança, sem medo”.
“Precisamos de preservar a natureza, o ser humano e o planeta”, sublinha o especialista. “Precisamos de fazer aqui um pacto de sustentabilidade” e, para tal, é importante que estes “nativos digitais” estejam ativos e em contacto com o exterior.