Os Emirados Árabes Unidos (EAU), que presidem à 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP28), propuseram uma via intermédia para reduzir a utilização de combustíveis fósseis em todo o mundo, gorando expectativas a muitos países e organizações.
O novo texto, refere a agência noticiosa France-Presse (AFP), provocou uma "grande desilusão" aos países e organizações não-governamentais (ONG) que esperavam um apelo claro à "eliminação progressiva" do petróleo, do gás e do carvão, responsáveis pelo aquecimento global.
Segundo a nova redação, apela-se à redução do consumo e da produção de combustíveis fósseis "de uma forma justa, ordenada e equitativa", de modo a atingir o zero líquido (neutralidade carbónica) antes ou por volta de 2050, "tal como recomendado pela ciência".
Mas o texto deixa de referir a palavra "saída" dos combustíveis fósseis, incluindo agora todo um cardápio de desejos dos países produtores e exportadores de petróleo, como a menção de tecnologias incipientes de captura e armazenamento de carbono, que exigem para continuar a bombear hidrocarbonetos.
No que se refere ao carvão, o texto apela a uma "rápida redução sem captura de carbono", mas também a "limites às autorizações concedidas para novas centrais elétricas a carvão" sem captura de dióxido de carbono.
Para a AFP, tal conclusão em relação ao carvão, constitui, de facto, um retrocesso em relação à COP de Glasgow, há dois anos, quando não foram concedidos cheques em branco para novas centrais elétricas.
Um parágrafo do texto de 21 páginas cita também as tecnologias de "baixas emissões", incluindo a nuclear, a captura de carbono e o hidrogénio de "baixo carbono", "para aumentar os esforços de substituição dos combustíveis fósseis ininterruptos nos sistemas energéticos".
Esta formulação faz eco da declaração conjunta de Sunnylands, assinada em novembro pela China e pelos Estados Unidos.
Os dois maiores emissores mundiais de gases com efeito de estufa (41% entre eles) evitaram falar de "eliminação progressiva" dos combustíveis fósseis, mas sublinharam que as energias renováveis (solar, eólica, entre outras) devem substituí-los gradualmente.
UE rejeita proposta com elementos "completamente inaceitáveis"
Os representantes da União Europeia nas negociações da cimeira do clima rejeitaram a proposta da presidência da COP28, considerando que o texto contém elementos que "são completamente inaceitáveis".
A posição foi assumida pela ministra espanhola Teresa Ribera e o comissário neerlandês Wopke Hoekstra. "Há elementos neste texto que são completamente inaceitáveis", afirmou, em declarações aos jornalistas, Teresa Ribera, ministra da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico, que está a representar a União Europeia nas negociações.
Teresa Ribera referia-se, em concreto, à questão dos combustíveis fósseis, uma vez que na nova redação há o apelo à redução do consumo e da produção de combustíveis fósseis, mas o texto deixa de referir a palavra "saída" dos combustíveis fósseis.
"É claramente insuficiente e desadequado para responder àquilo que estamos aqui a tratar. E não é porque a União Europeia quer, é porque os cientistas são claros sobre o que é preciso. No tomo dessa lista está o fim dos combustíveis fósseis", sublinhou, por sua vez, o comissário europeu para a Ação Climática, Wopke Hoekstra.
A COP28, a decorrer no Dubai desde 30 de novembro, estava prevista terminar na terça-feira e era essa a expectativa do presidente, Sultan Al-Jaber, que até apontava as 11h00 como meta para a aprovação do texto final.
No entanto, o acordo está agora ainda mais longe. "Temos horas, ou dias se necessário, pela frente. Gostaríamos de sair desta COP com a mensagem clara de que o mundo precisa e, neste momento, não estamos nesta posição", referiu Teresa Ribera.
Em concreto, Wopke Hoekstra sublinha a necessidade de especificar a redução gradual dos combustíveis fósseis, a forma como o mundo deve "travar o carvão" e o reconhecimento de que não é possível eliminar os combustíveis fósseis "de hoje para amanhã", mas que os chamados "unabated" (aqueles em que não é possível a captura de carbono) não pode atrasar a transição.
"Tem de ser uma COP que se transforme num ponto sem retorno e num ponto de referência nesta década crítica. Falta muito trabalho para poder garantir que o cenário final seja claro e claramente congruente com a mensagem que queremos passar", considerou Teresa Ribera, com o comissário a acrescentar que a União Europeia "irá discutir o tempo que for necessário".
Duarte Cordeiro. "O texto apresentado foi uma desilusão"
O ministro do Ambiente e Ação Climática considerou que a proposta mais recente da presidência da COP28 para o balanço do Acordo de Paris foi uma desilusão e defendeu mais ambição em relação ao fim dos combustíveis fósseis.
"O texto apresentado foi uma desilusão porque se por um lado reconhece a importância da ciência, do ponto de vista da mitigação não há correspondência em termos de ambição para ir ao encontro do que é reconhecido como fundamental do ponto de vista dos objetivos", afirmou Duarte Cordeiro.
Recordando a redação anterior, que referia diferentes opções de formulação no que diz respeito ao tema dos combustíveis fósseis, Duarte Cordeiro admitiu que não previa "um recuo tão grande".
Na nova redação, é mencionado o apelo à redução do consumo e da produção de combustíveis fósseis, mas o texto deixa de referir a palavra "saída" dos combustíveis fósseis, ainda que noutros pontos reflita algumas das preocupações da União Europeia.
Por exemplo, o rascunho mais recente refere a necessidade de manter os esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C, e a redução das emissões de gases com efeito de estufa em 43% até 2030, mas inclui outros aspetos que não são congruentes com estes objetivos.
"Podemos até dizer que reconhecemos o problema, mas se depois não temos medidas que vão ao encontro do que se espera do ponto de vista das respostas, na realidade acabamos por não reconhecer a relevância daquilo que a ciência nos está a dizer", lamentou o ministro.
Admitindo que será difícil chegar a um texto final que mereça consenso até ao final do dia de terça-feira, quando estava previsto terminar a COP28, o governante português defendeu mais ambição sobretudo no que diz respeito aos aspetos relacionados com a mitigação das alterações climáticas.
"Se não temos ambição, não vamos atingir os objetivos globais que precisamos de atingir", disse, acrescendo que "a mitigação é, sem dúvida, o aspeto que tem de melhorar de forma mais evidente".
"As nossas vozes não estão a ser ouvidas"
À medida que os negociadores e os observadores iam desvendando o texto, começaram a surgir reações do Dubai, desde as moderadas às indignadas.
Ouvido pela Renascença, José Luís Monteiro, da organização não governamental Oikos, fala mesmo numa traição às gerações futuras.
"O que sai desta COP, mais uma vez, é o do costume: há pequenos passos que são dados, mas os passos mais importantes continuam a ser sempre empurrados para a frente no tempo, o que significa que, provavelmente, quando tiverem de ser tomados vão doer ainda mais", lamenta, destacando, sobretudo, "a questão dos combustíveis fósseis", uma "luta" da União Europeia e de várias ONG's. "É mais uma desilusão para juntar às dos últimos anos e é mais uma traição para as gerações vindouras".
Também a associação ambientalista Zero já se manifestou extremamente desiludida com o curso das negociações no Dubai. "A atual proposta é uma enorme desilusão e retrocesso", diz a associação, em comunicado, dando os parabéns à UE "que compareceu à COP28 com um mandato claro para garantir que esta Conferência conduziria a uma eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, por ter recusado esta proposta e continuar a respeitar a ciência climática".
"As nossas vozes não estão a ser ouvidas" e o projeto é "totalmente inadequado" no que se refere à questão dos combustíveis fósseis, denunciou o ministro do Ambiente da Samoa, Cedric Schuster, que preside à Aliança dos Pequenos Estados Insulares (Aosis).
O texto "representa um grande retrocesso em relação às versões anteriores", afirmou Harjeet Singh, diretor de estratégia política global da CAN, que representa mais de mil associações e participa nos trabalhos da COP como observador.
"Surpreendentemente, já não inclui qualquer texto explícito sobre a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis", acrescentou Singh.
Andreas Sieber, da ONG 350.org, também criticou as propostas por serem "mais fracas" do que as anteriores. "As nações comprometidas com a ação climática devem rejeitar esta proposta enfraquecida e insistir em mudanças transformadoras para ter um efeito significativo nas alterações climáticas", afirmou.
Uma fonte dos negociadores europeus, contactada pela AFP, considera que o texto "está longe do que o clima precisa atualmente". "Uma coisa é certa: não chegaremos lá até às 11h00 de terça-feira", hora a que o Sultão al-Jaber pretende encerrar a COP28.
Li Shuo, do grupo de reflexão Asia Society, salienta que o texto já não inclui diferentes opções, mas está numa forma final, ao contrário das três versões anteriores, o que sugere que o presidente da COP28, al-Jaber, está a apresentar um compromisso do tipo "pegar ou largar".
Capitalismo "nunca será verde"
O secretário-geral do PCP criticou a "brutal contradição" entre as palavras e as ações das potências capitalistas sobre as alterações climáticas, acusando-as de "hipocrisia e cinismo" e considerando que o capitalismo "nunca será verde".
Num discurso na sessão pública "COP 28. O capitalismo não é verde", à frente da reitoria da Universidade de Lisboa, Paulo Raimundo referiu que, na COP deste ano, que decorre no Dubai, foi "bem visível o desfile interminável de hipocrisia e de cinismo" das potências capitalistas.
"Aquela brutal contradição permanente entre o que é que avançado e dito, e depois a ação de cada um", referiu.
O secretário-geral do PCP criticou a "profunda hipocrisia dos maiores responsáveis pelas emissões cumulativas de gases de efeito estufa", que procuram "passar para outros países emergentes a responsabilidade desta questão".
É "o cinismo das potências capitalistas, esses autênticos abutres, predadores dos recursos em qualquer canto do planeta, a apontarem o dedo a países cujo único crime que estão a cometer é utilizarem os seus próprios recursos para responder às necessidades das suas populações", disse.
Paulo Raimundo defendeu que essas potências "podem pintar-se das cores que quiserem" e "avançar os mais belos e mais bem construídos discursos", mas não conseguirão ultrapassar a ideia de que "não é possível enfrentar os desafios ambientais no quadro do capitalismo".
"Esse sistema que condena milhões à pobreza mais absoluta e abjeta, milhões à fome e à doença. Não é possível esse mundo melhor a que todos temos direito perpetuando uma situação onde 1.300 crianças morrem por dia por diarreia", sublinhou.
Não é possível, prosseguiu Paulo Raimundo, "enfrentar os desafios ambientais com os poderosos deste mundo a perpetuar mais mortes, mais destruição, mais guerra na Ucrânia, mais massacre e destruição na Palestina".
"Para o capitalismo, de pouco vale o bem-estar das populações, a preservação da natureza, a defesa dos ecossistemas. Estão-se a marimbar para o valor dos mares, dos oceanos, das florestas ou dos solos, o que conta - foi assim antes, é assim hoje e será assim amanhã - é o lucro e a sua concentração", defendeu.
"Estamos numa corrida contra o tempo"
"Estamos numa corrida contra o tempo", afirmou o secretário-geral da ONU, António Guterres, no início deste dia interminável, apelando aos países para que demonstrem "flexibilidade máxima" para evitar uma grande desilusão na terça-feira.
Guterres foi muito claro: a Cimeira do Clima COP28 deve apelar a uma "eliminação progressiva dos combustíveis fósseis", mas "isto não significa que todos os países tenham de eliminar os combustíveis fósseis ao mesmo tempo".
Por outras palavras, os países ricos devem dar o exemplo e ajudar os países mais pobres a financiar as suas centrais solares ou a eletrificação das suas fábricas.
"Não temos um minuto a perder nesta reta final crucial", avisou Simon Stiell, diretor da ONU Clima, afirmando que "os níveis mais elevados de ambição são possíveis" nos dois temas inseparáveis que estão no centro das últimas conversações: o fim do petróleo, do carvão e do gás, por um lado, e os dólares de que os países pobres precisam para se desenvolverem sem combustíveis fósseis, por outro.
"Não podemos sair do Dubai sem termos uma ideia clara de como os nossos países vão ser apoiados na transição energética", disse à AFP Madeleine Diouf Sarr, do Senegal, a presidente cessante do grupo dos Países Menos Avançados (PMA).
Azerbaijão recebe próxima cimeira do clima em 2024
O Azerbaijão, grande produtor de petróleo, será o anfitrião da conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas de 2024, a COP29.
"A presidência da COP28 felicita o Azerbaijão por ter sido escolhido para acolher a COP29 no próximo ano. Esperamos trabalhar em conjunto para fazer avançar ainda mais a ação climática, garantindo que mantemos 1,5°C ao nosso alcance e não deixamos ninguém para trás", afirmou a presidência da COP28.
O ministro da Ecologia e dos Recursos Naturais do Azerbaijão, Mukhtar Babayev, anunciou no sábado que "existe consenso" para que o Azerbaijão acolha a COP29, depois de a rival Arménia ter retirado a candidatura.
Com esta escolha, a cimeira da ONU sobre o clima será realizada pelo terceiro ano consecutivo num país que produz petróleo ou gás. O petróleo e o gás, em conjunto com o carvão, são das principais causas do aquecimento global.
As cimeiras do clima destinam-se a lutar contra o aquecimento global, e impedir que as temperaturas subam além de 2°C, ou de preferência não ultrapassem os 1,5°C em relação à época pré-industrial.