Ângelo Soares, membro do secretariado diocesano do Porto da Pastoral da Família, diz em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia que a pandemia deixou "marcas de isolamento, de solidão” e levou “gente a envelhecer muito mais rapidamente do que seria de esperar”.
Neste II Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, Ângelo Soares deixa um lamento pela “falta de companhia e de alegria” que o isolamento dos últimos dois anos provocou.
Este avô considera necessário “sermos capazes de educar os filhos para a autonomia” e defende “a valorização dos idosos”, lembrando que fez planos para a reforma, para “pegar na experiência de vida e pô-la ao serviço da sociedade”.
“Não se aproveita suficientemente os recursos dos idosos”, sublinha.
Para Ângelo Soares, “na sociedade há medo de envelhecer e medo de morrer” quando “é importante aceitarmos que a vida é finita”, sem nunca esquecer que “a pessoa, mesmo nessa altura, precisa de companhia, precisa de carinho e precisa de acompanhamento”.
Foi no último dia de janeiro de 2021 que o Papa Francisco anunciou a instituição do Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que se assinala no quarto domingo de julho, junto à celebração litúrgica de São Joaquim e Santa Ana, de dia 26 de julho.
Ângelo, para início de conversa: é avô de quantos netos?
Sou avô de dois netos. Que saiba. Não consta nenhum a caminho, mas sou avô de dois netos. Um rapaz que vai fazer cinco anos em outubro e uma menina que está quase nos 11 meses.
E como é essa experiência?
É fantástica. Tenho pena que não tenha sido mais cedo e que não seja mais frequente. Tenho três filhos. Ainda falta o filho de um e a neta demorou bastante tempo por razões de saúde deles. Eu, até na brincadeira, digo que ela em vez de Luíza se devia chamar Sebastiana porque foi muito desejada.
Dizia que tem pena de ter sido avô só há tão pouco tempo...
Tenho pena. Não me importava de ter sido avô mais cedo.
Esse é um problema da atualidade? É-se pai ou mãe cada vez mais tarde...
Eu noto que alguns dos meus amigos que têm pena de ainda não serem avós, apesar de andarem em idades próximas da minha. E lembro-me de outros que têm a sorte e a felicidade de ter os netos mais cedo, quando ainda têm mais energias. Mas acho que vale a pena também uma pessoa pôr as energias que ainda vai tendo e viver o momento presente. Eu acho que não vale a pena andar sempre com saudades do que podia ter sido.
Faz sentido a instituição que o Papa quis fazer deste dia - Dia Mundial dos Avós e dos Idosos - ou é mais um semelhante àqueles que já existem?
Acho que faz sentido chamar a atenção para a situação dos idosos, por um lado, que realmente é uma geração que neste momento tem uma dimensão, se calhar, muito maior do que já teve, porque, a longevidade aumenta. Numa geração, a esperança de vida subiu quase 20 anos. Várias vezes comento isso: quando eu era miúdo ou jovem, falava-se de um sexagenário e um sexagenário já era velho. E, então, quando vinha no jornal a notícia de que o septuagenário foi atropelado, a gente dizia: "Claro! Quem é que o mandou sair à rua tão velho?" Agora, achamos que é uma pessoa perfeitamente válida.
Portanto, acho que é bom chamar-se a atenção para os idosos, porque é uma geração com uma dimensão grande e com problemas específicos. E os avós também. Acho, até por experiência própria, que somos um valor que nem sempre é compreendido e nem sempre é aproveitado, e que não é só o substituto da creche ou do ATL. Temos experiências específicas que eu também gostei de viver com os meus avós e acho importante que os netos tenham oportunidade de viver com avós.
Os avós têm cada vez um papel mais relevante no acompanhamento das crianças...
É verdade. Muitas vezes, os pais trabalham e é preciso os avós para ir buscar à escola ou levar à escola e levar àquelas múltiplas atividades com que muitas vezes bombardeamos os netos, coitadinhos, não têm tempo para brincar, nalguns casos. Felizmente, não é o meu caso, que tenho muito tempo para os meus netos com a minha casa. Mas os avós têm um papel importante desse acompanhamento e é bom também que assim seja. Por um lado, porque se sentem úteis, porque continuam a pôr a render as suas capacidades, continuam a ser desafiados, às vezes a atualizar-se. Eu acho imensa graça quando avós dizem que foi o meu neto que me pôs a trabalhar com o computador, ir às "apps", ao telemóvel, a usar o WhatsApp, ou outra coisa qualquer. Acho ótimo que essa interação também exista e que os netos gostem de estar com os avós, de ouvir histórias de outros tempos, de ver outras maneiras de ver a vida.
E não serem apenas o substituto das creches...
Exatamente, não serem só substitutos. Acho que esse papel dos avós é muito bonito. Esse papel de terem uma participação especifica, de colocarem em jogo a sua experiência de vida e a riqueza de tudo o que aprenderam. E é benéfico também porque os netos os desafiam a não estiolar.
Alarguemos um pouco o olhar, também pela sua experiência na Pastoral Familiar. Para além desta importância de que estava a falar dos avós no desenvolvimento emocional das crianças, até pelas sucessivas crises que temos estado a viver, também é notória a importância a nível do desenvolvimento material. Muitas vezes, os avós são já quase o último ponto de refúgio, o porto seguro, quando há uma crise económica, por exemplo...
É verdade. Não é uma situação que nos apareça muito na pastoral familiar, mas reconheço que sim, que a situação económica global é muitas vezes mais desafiante. Também a estabilidade das famílias, infelizmente, não é a que já foi. É aquela história que a gente lê, às vezes, em que nós ainda éramos do tempo em que as coisas se remendavam e agora são de usar e deitar fora. Isso também se reflete na estabilidade das famílias, no número de divórcios. E os avós permanecem, realmente, muitas vezes como porto seguro. Às vezes, demais, na minha opinião, às vezes demais. O defeito está do nosso lado, porque, muitas vezes, não somos capazes de educar os filhos para a autonomia. Ou seja, somos ninho, mas, ao mesmo tempo, devemos ser também escola de voo, como dizia alguém há pouco tempo. Temos que dar aos filhos asas para voarem sozinhos e deixá-los também às vezes ter dificuldades.
Há um outro aspeto também ele relevante, que tem a ver com aquele momento de grande dificuldade e de grande carência, em que, os avós são o último refúgio para ajudar em situações de grande dificuldade. Essas situações acontecem...
Acontecem, claro que acontecem. Mas eu estava a referir-me mais à situação de superproteção que muitas vezes temos com os nossos filhos e depois eles veiculam também para os deles, o que na minha opinião não é saudável. É aquela história que se conta da mãezinha que diz ao filho "se o casamento não correr bem tens sempre aqui o teu quartinho". Eu acho que isso é péssimo. Nós tivemos o cuidado de desfazer o quarto dos filhos quando eles saíram de casa e transformamos esses compartimentos. Só um deles é que ficou para receber os netos.
Depois da pandemia, tivemos este período bastante marcado, de que estamos a falar. Olhando para o que foi a Covid-19 e os seus impactos, recorrendo à sua experiência pessoal e às várias experiências que lhe foram chegando, como é que foi vivido esse período sem a presença habitual dos netos, fisicamente?
Acho que houve muita gente que ficou com marcas que não sei se vão alguma vez desaparecer. Marcas de isolamento, de solidão. Gente que envelheceu, visivelmente, muito mais rapidamente do que seria de esperar, porque lhes faltou a companhia, lhes faltou a alegria, lhes faltou os desafios que os netos também constituem e os filhos.
Também teve aspetos positivos de criar aquelas ligações tecnológicas a que as pessoas não estavam habituadas, a conversa diária com os netos, pelo WhatsApp e coisas assim. Mas não é a mesma coisa, obviamente. E as manifestações de afeto físicas, a presença, o olhar, os sorrisos, isso fez muita falta a muita gente. Fez e faz muita falta a muita gente, porque acho que também se criou algum hábito de isolamento pós-pandemia: A obrigação de ficar por casa durante a pandemia transformou-se um bocado no comodismo de ficar por casa.
Isso não se pode acentuar agora com o recurso a essas novas tecnologias que todos aprendemos?
Acredito que sim, que é preciso alguma sabedoria para uma pessoa não se deixar dominar por esse pseudo-conforto, mas que acaba por ser desconfortável no sentido de que afasta as pessoas e esfria as relações.
Vamos então ao exemplo do avô. Como é que o avô combate essas situações? Como é que se recupera o tempo perdido?
Eu falo com os filhos com frequência e com os netos. A mais pequenina não alimenta conversa, como é evidente: tem 11 meses. Mas todas as semanas, normalmente, vão a minha casa uma, duas vezes. Aliás, faz parte das minhas tarefas ir buscar o neto duas vezes na semana. As outras três é a avó do outro lado. E, normalmente, a minha agenda desses dias está bloqueada. Não há nada para ninguém e a minha mulher também faz esse esforço. Aqueles dias que são para os netos são para os netos: seja para brincar, seja para ler um livro, seja para construir coisas em plasticina, seja para ir para o quintal, porque rapazinho acha muito engraçado jardinar. É tempo para os netos. Acho que é importante que assim seja. Nós apreciamos isso, apreciamos vê-los crescer, apreciamos, transmiteír-lhes algumas experiências, apreciamos ouvir as histórias. Para já, dele e esperamos que a menina também assim venha a ser. Esse procurar ir ao encontro e estar com, para mim é fundamental.
É também uma forma de recuperar o tempo que a pandemia fez perder?
É, sim. Embora eu tinha tido a sorte de, durante a pandemia, apesar, de tudo manter uma relação bastante próxima, exceto naquele período em que fomos mesmo forçados a estar em casa. Aí, realmente, recorríamos às tecnologias. Desde que houve um bocadinho de abertura, com todos os cuidados, houve contacto, houve relação. Eu tive a sorte de não ter havido propriamente afastamento, mas muitos não tiveram essa sorte. Sobretudo as pessoas que estão em estruturas residências de idosos ou que estão mais longe. Eu tive a sorte de não estar muito longe dos meus filhos e dos meus netos, mas outros não terão essa sorte.
Sobre a jornada de hoje, vale a pena recordar um apelo do Papa: que os mais velhos não sejam apenas destinatários, mas sujeitos da ação pastoral, na Igreja. Isso vale também para a sociedade, no seu todo?
Acho que sim. É verdade que, por exemplo, a nível da pastoral familiar essa não tem sido uma preocupação tão insistente como poderia ser, como deveria ser. Estamos agora a tentar arrepiar um bocadinho de caminho e é uma preocupação. O secretariado, aqui no Porto, tem veiculado junto das equipas locais que haja esta atenção aos idosos, aos sós e aos enlutados também. Não só aquela preocupação imediata, no momento de um falecimento, mas do acompanhamento. O acompanhamento da solidão.
A nível social, a valorização dos idosos e o não nos deixarmos ficar pela mantinha sobre os joelhos, sentadinhos no sofá, é fundamental, mas isso também parte da atitude do próprio idoso.
Eu fiz muitos planos para quando me reformasse e felizmente - a minha mulher até brinca com isso -, estou mais ocupado do que estava enquanto tinha vida profissional. Não me aborrece nada. Tem mesmo de ser assim: pegar numa experiência de vida, mais ou menos rica, mais ou menos diversificada, e continuar a pô-la ao serviço da sociedade de outra maneira.
Optei por só ter voluntariado, tenho a minha reforma e o meu tempo é para o voluntariado. Além do Secretariado da Pastoral da Família, tenho o movimento Refood, de recolha e distribuição de alimentos, pertenço a uma associação que responde ao problema dos idosos, uma iniciativa da Fundação Gulbenkian “Ser Mais-Valia”, em que os sócios só podem ter mais de 55 anos. E é realmente a ideia de capitalizar a experiência das pessoas e pô-la ao serviço, contribuir para uma ou para uma velhice ativa. Colaborei na obra do Frei Gil, também na montagem de sistema de qualidade. Portanto, é pegar nas minhas experiências de vida e continuar a pô-las ao serviço.
Francisco refere na sua intenção de oração para julho que, para a velhice, há muitos planos de assistência, mas poucos projetos de vida. Sente isso?
Sinto. Não sofro com isso pessoalmente, mas sinto que se olha muito para idosos como os coitadinhos, que é preciso amparar, que é preciso cuidar. Se calhar, é preciso ter lá no seu ninhozinho dourado, na sua gaiolinha, mas não se aproveita suficientemente, quanto a mim, os recursos que os idosos são, recursos de experiência. Podemos fazer muitas contribuições ativas para a sociedade, nomeadamente nestas áreas do voluntariado, de acompanhamento, até, de outros idosos, de presença ativa na sociedade. Acho que não se está a olhar para isso como se poderia olhar.
A mensagem para este dia sublinha que, para muitos, a sociedade deve manter os idosos "o mais longe possível, talvez juntos uns com os outros, em estruturas que cuidem deles”. Por vezes, não há outra solução e nós não estamos cá para julgar, mas este afastamento tem prejudicado o diálogo entre gerações? Há um património de vida que estamos a desperdiçar?
Quando se faz esse afastamento, claro que há um património que se desperdiça. Há, como estava a dizer, situações em que não há outro remédio. Eu vivi essa situação com a minha mãe: durante muito tempo esteve em casa, sobretudo das minhas irmãs, quando já estava sozinha, mas houve uma altura em que teve mesmo que ser. Estava numa residência muito perto e um de nós, todos os dias, ia lá e ao fim de semana vinha sempre almoçar a casa de um dos filhos, almoçar e muitas vezes jantar. Exatamente para não se quebrar essa ligação. E com a minha sogra foi igual. Aliás, foram as duas no mesmo dia para a mesma residência e faziam companhia uma à outra.
Acho que é fundamental, quando há necessidade de recorrer a uma instituição dessas, por razões de saúde, de falta de autonomia, etc., que os filhos tenham a responsabilidade de manter o contacto, de manter as visitas, de também de os levar a sair quando possível e sempre que possível.
Às vezes, a dificuldade está em encontrar locais perto…
É verdade, isso também é verdade, mas é um esforço que se tem de fazer e é difícil, mesmo a questão económica.
O Papa tem deixado várias mensagens sobre tirar as rugas e parecer mais novo do que somos, a dificuldade em assumir que isso faz parte da vida e que a velhice também é uma bênção…
Eu noto que na sociedade há medo de envelhecer e medo morrer. As duas coisas. Portanto, as pessoas, muitas vezes, pretendem esconder, porque não se querem confrontar com uma realidade que é óbvia. Devia ser de extrema naturalidade.
Eu muitas vezes tenho de me lembrar que tenho a idade que tenho, porque não me sinto propriamente velho. Mas lembro-me, muitas vezes, de um médico, que me assistiu durante um tempo, que dizia: “Convença-se de que nós não vamos para melhor e, portanto, temos de ir aprendendo a gerir as nossas incapacidades e a usar as capacidades que ainda temos”.
É importante aceitarmos esta naturalidade de que vamos evoluindo. Não é melhorando tudo, mas temos capacidades que melhoram, outras que se vão perdendo e temos de aceitar. Como temos de aceitar como inevitável que um dia vamos acabar. Eu tenho pena que, atualmente, se esconda muito a morte, porque, mesmo para as crianças e jovens, acho que é importante confrontar-se com a situação da perda e perceberem que a vida é finita. A pessoa, mesmo nessa altura, precisa de companhia, precisa de carinho e precisa de acompanhamento.
O Papa tem insistido na necessidade de combatermos a teoria do descarte e de não deixarmos ninguém para trás, mas a pandemia não terá acentuado o desleixo para com os mais frágeis?
Eu acho que sim, se calhar nas sociedades mais evoluídas ou mais ricas, noto desleixo exatamente para com os idosos. Noutras sociedades, acho que se mantém o carinho pelos idosos. Eu tenho bastantes contactos com Moçambique, sobretudo, com rapazes da Casa do Gaiato, e acho muito interessante a forma como eles se referem aos avós, como se preocupam os avós. Converso muito com eles, várias vezes por semana, e dizem: “tu és madoda”, na língua deles. Quer dizer, és um “velho sábio”. Ele diz isto como um elogio e por isso me pede muitos conselhos. Às vezes temos de aprender com outras sociedades, que nós às vezes consideramos menos evoluídas. É uma coisa que aprecio nos africanos, este carinho com os idosos e a preocupação com a família em todas as suas gerações. Aqui, podíamos arrepiar caminho e olhar para os idosos de outra maneira, realmente, como uma bênção e como uma fonte de experiência, com uma forma já diferente de viver a vida, mas que nos pode ajudar a preparar a nossa chegada lá, que é já depois de amanhã.