Depois da pandemia do novo coronavírus seria um erro manter em vigor um sistema económico que mata pessoas e o planeta como se nada tivesse acontecido, defende o biólogo e consultor internacional Daniel Christian Wahl.
Em entrevista à Renascença, o especialista em desenvolvimento sustentável e inovação transformadora defende que o capitalismo já não funcionava para a maioria antes da pandemia de Covid-19 -- o que o flagelo fez foi confirmar a fragilidade do comércio internacional e a necessidade de regressar a uma economia regenerativa e colaborativa, local, próxima das regiões e das pessoas.
O seu trabalho enquanto designer de sistemas de inspiração biológica e inovação transformadora assenta no conceito de culturas regenerativas. O que são?
São culturas que estão a tentar curar a coesão social e as condições do ecossistema local, do impacto destrutivo que causámos nos últimos 200 anos, e entregar as comunidades e os ecossistemas à próxima geração num estado melhor do que estavam quando os recebemos dos nossos pais.
São culturas saudáveis, resilientes e adaptáveis, prontas para responderem às mudanças, quer sejam climáticas ou políticas, para podermos viver no futuro de maneiras que realmente sirvam toda a humanidade e toda a vida.
Diria que esse é um sistema com capacidade de mudar as cidades e as profissões como as conhecemos?
Muda as cidades. Para que uma cidade seja regenerativa ou sustentável, ela precisa de se integrar profundamente na região local, ela deve reconectar-se aos agricultores locais, ao ecossistema local, à disponibilidade energética local. Isso iria aproximar de casa a produção e o consumo, iria criar economias biorregionais vibrantes de apoio à cidade e, desta forma, mudar também o trabalho.
Embora seja ótimo estarmos globalmente interconectados, neste momento, com o coronavírus, estamos a assistir à fragilidade do sistema. Se criarmos sistemas um pouco mais autossuficientes, em que o trabalho volta a focar-se no local, deixa de ser essencial trazer manteiga da Nova Zelândia quando pode ser feita ali ao lado.
"Não sou radical ao ponto de defender que tudo no capitalismo é mau, mas a forma como o capitalismo está desenhado hoje é estruturalmente disfuncional e está a matar muitas pessoas e o planeta"
Fala do coronavírus. Seria possível responder de forma mais eficaz a epidemias e pandemias como esta nesse sistema regenrativo?
Aquilo a que assistimos, como efeito secundário do coronavírus, é que a produção já parou há várias semanas na China e há atraso na entrega dos contentores importados da China. O sistema global de comércio está tão distante que, perante uma situação como este vírus, podemos ver como este sistema é frágil.
Com a regeneração biorregional, economias regionais em produção e consumo mais próximas de casa, obviamente criamos um sistema que é muito mais resiliente, porque não estamos tão dependentes das grandes importações de todo o lado. Isso não significa que vamos deixar de fazer trocas comerciais, apenas que vamos produzir o que podemos na região, para a região, mais próximo de casa, e negociaremos apenas aquilo que não temos na região.
Como define a economia regenerativa? É o oposto do capitalismo?
Redesenha completamente o capitalismo. Não sou radical ao ponto de defender que tudo no capitalismo é mau, mas a forma como o capitalismo está desenhado hoje é estruturalmente disfuncional e está a matar muitas pessoas e o planeta.
Penso que com esta crise do coronavírus estamos a ser confrontados com a necessidade de colaborarmos, a uma escala global e sem precedentes na história da Humanidade, e teremos de investir também a um nível inédito. Por isso, seria um erro simplesmente regressar ao sistema vigente. Não se trata de sobreviver ao vírus e refazer o sistema como o tínhamos, porque as mudanças climáticas e a emergência climática já nos estavam a dizer que o sistema não funcionava e os níveis quase obscenos de desigualdade no planeta, com tantas pessoas extremamente pobres e poucas muito ricas, também era insustentável. Podemos, então, aproveitar esta oportunidade que a crise do vírus nos está a dar para redesenhar os nossos sistemas económicos, de forma a que realmente sirvam as pessoas e o planeta.
Este sistema regenerativo é baseado na colaboração e solidariedade. Isto não o torna irrealista?
Acho que um dos grandes erros do sistema educacional é o facto de promovermos uma versão mal interpretada do Darwinismo, de que tudo gira à volta da competição por recursos escassos. A vida não funciona assim. Sou formado em Biologia e a vida é fundamentalmente mais simbiótica e colaborativa do que competitiva. Nesse sentido, não penso que seja irrealista. Acho que, naturalmente, a nossa espécie evolui como colaboradores, somos humanos apenas porque aprendemos a colaborar há muitos anos. Portanto, é mais realista criar um mundo que serve todos e vai da escassez competitiva à abundância colaborativa partilhada.
Temos de voltar atrás?
Eu prefiro dizer que temos de seguir em frente. Porque não se trata de um tipo de passado idealista, voltar às culturas regionais e à maneira indígena de fazer as coisas. Estas culturas regionais e povos indígenas podem ensinar-nos muito sobre como viver muitos anos e milénios, sem esgotar nem destruir o ecossistema local. Agora temos a oportunidade de misturar o melhor do passado e o melhor da inovação tecnológica e avançar para um mundo que sirva todos.
Como asseguramos que essa inovação tecnológica de que fala não prejudica o nosso futuro enquanto espécie?
É uma das maiores perguntas que temos de continuar a fazer. Acho que chegámos a um ponto em que muitas pessoas acreditam que estamos em desvantagem tecnológica, que estamos numa mudança tecnológica exponencial e que não podemos detê-la. Mas é como com o sistema económico: fomos nós que desenhámos a tecnologia e o sistema económico e podemos escolher redesenhá-los. O que significa que não precisamos de usar tudo o que é tecnologicamente possível, apenas temos de escolher de forma mais sábia que tecnologias realmente nos servem. Queremos criar um futuro regenerativo, onde a tecnologia serve a Humanidade e não o contrário.
Na base deste sistema regenrativo está a procura de uma resposta às alterações climáticas. Por que é que os planos e medidas que têm sido tomadas a nível global, em defesa do ambiente, não estão a ter o impacto desejado?
As alterações climáticas são uma ameaça difusa e há um atraso entre a execução e o momento em que começamos a ver os efeitos das nossas ações. Já é tarde, provavelmente. Começámos a senti-las agora. Levámos 40 a 50 anos para responder às mudanças climáticas, mas só demorámos dois meses para reagir ao coronavírus. Se usarmos a mesma urgência, o mesmo nível de disposição para colaborar a uma escala global numa resposta às mudanças climáticas, então podemos mudar rapidamente as coisas.
"Sou formado em Biologia e a vida é fundamentalmente mais simbiótica e colaborativa do que competitiva. É mais realista criar um mundo que serve todos e vai da escassez competitiva à abundância colaborativa partilhada"
Também devemos estar cientes de que, tal como são trágicas as mortes por coronavírus neste momento, há muitas mais pessoas a morrer todos os anos por causa do nosso sistema económico estruturalmente disfuncional, por causa da desigualdade, por causa do colapso dos ecossistemas e devido às alterações climáticas. Só porque as alterações climáticas e o colapso do ecossistema são uma forma mais subtil e difusa de causar sofrimento e morte, não quer dizer que não estejam a acontecer.
A grande oportunidade que temos agora é usar este sentimento súbito, de que estamos todos no mesmo barco a lutar contra a Covid-19, que nos une além fronteiras, através dos sistemas de crenças e blocos políticos. Vamos usar isso de forma inteligente, para colaborar. Devemos às próximas gerações a construção de um futuro melhor.
Há cada vez mais pessoas preocupadas com estas questões, incluindo jovens. Estamos apenas perante uma moda?
Não. Acho que estes jovens estão conscientes de que o que está a acontecer afeta profundamente o futuro deles e até a possibilidade de os filhos terem um futuro. Acho que estamos num ponto de inflexão na história humana, veremos profundas transformações nos próximos dois a três anos que, durante muitos anos, não achámos que seriam possíveis. Não é apenas a crise do coronavírus, é o colapso económico que chega, na esteira da crise climática, e a forma como as cadeias de produção começam a quebrar. Somos convidados a ver como podemos ajudar as populações locais, de uma forma que realmente as sirva e cure a região local.
Por isso não acho que seja uma moda, esta preocupação chegou para ficar e em 2019 fiquei entusiasmado com as "Sextas para o Futuro" da Greta Thunberg, e também com a "Extinction Rebellion", eles finalmente conseguiram levar este problema para as ruas e disseram que chegava, precisamos de acordar e agir agora, porque esta é uma emergência planetária.
"Temos de gastar grandes quantias de dinheiro a um nível sem precedentes de colaboração global e usá-lo de forma inteligente, não apenas como resposta à pandemia viral. Se temos de rejeitar o sistema, vamos redesenhá-lo e reconstruí-lo de forma a que também lide com as alterações climáticas, com o colapso do ecossistema em cascata, que reavalie o papel dos agricultores e revalorize as energias renováveis na região, que recupere os ecossistemas"
Com todas estas iniciativas pró-ambiente e com esta crise pandémica, vamos poder regressar à vida que tínhamos?
Penso que seria um erro tentar regressar ao que tínhamos como se nada tivesse acontecido, "business as usual". Funcionava para alguns mas, para a maioria, já não respondia às necessidades.
Agora temos de gastar grandes quantias de dinheiro, a um nível sem precedentes de colaboração global, usá-lo de forma inteligente e não pensar nisto apenas como uma resposta à pandemia viral. Se temos de rejeitar o sistema, vamos redesenhá-lo e reconstruí-lo de forma a que também lide com as mudanças climáticas, com o colapso do ecossistema em cascata, que reavalie o papel dos agricultores e revalorize as energias renováveis na região, que recupere os ecossistemas.
Estamos a entrar na década das Nações Unidas para a restauração dos ecossistemas e esta próxima década é fundamental para trazer de volta a floresta, curar a água, curar o solo e, basicamente, criar um mundo que pode responder a um futuro em mudança, no sentido em que é mais resiliente, saudável e adaptável.
Como avalia o trabalho que o Papa está a desenvolver nesta área?
Estou muito entusiasmado ao ver o Papa a tomar iniciativas como estas, o regresso ao significado da raiz da palavra religião - a união. Para além do que distingue os diferentes grupos religiosos, não importa se são cristãos, muçulmanos ou hindus, trata-se da união da humanidade no nosso destino comum e no cuidado por este planeta. O Laudato si' é um dos melhores documentos sobre este tema, temos que nos unir enquanto humanidade.
Sei que o Papa está muito interessado no tópico do desenvolvimento regenerativo e regeneração. Haverá uma conferência este ano, primeiro em Pizza e depois em Roma, com o envolvimento do Vaticano, sobre o desenvolvimento regenerativo e o papel que a igreja pode desempenhar.
O que acha desse papel. É importante o envolvimento da Igreja?
Absolutamente! Porque, às vezes, as camadas da sociedade mais resistentes à mudança, mais conservadoras, estão relacionadas com a igreja católica e ter alguém à frente da igreja católica que convida estes conservadores a falarem sobre a mudança transformadora é crítico, neste processo de transformação. É um papel importante.
Qual será o nosso papel enquanto cidadãos? O que podemos fazer individualmente?
Todos precisamos de nos unir de uma forma colaborativa, numa escala comunitária, local, para nos perguntarmos como queremos viver neste lugar. O que podemos fazer para tornar este bairro, esta vila, esta cidade ou esta biorregião um lugar melhor e mais saudável para as atuais e futuras gerações? Ousar voltar a imaginar um mundo melhor.
Tem receio de viajar?
Claro, tenho uma mãe que está prestes a completar 80 anos e, portanto, todos estamos preocupados. Mas também estou empolgado, porque chegámos a um ponto em que não podemos deixar de agir e isso é vital.
As alterações climáticas são um assassino lento e silencioso, estão a provocar o colapso do ecossistema. Podem não ter sido uma ameaça visível o suficiente para nos unirmos como espécie, mas agora isto é a nossa oportunidade para fazer essa mudança.
A vida é, antes de tudo, um processo planetário, é um processo colaborativo simbiótico, a vida cria condições favoráveis à vida. A partir do momento em que voltarmos a perceber que, como seres humanos, fazemos parte dessa comunidade, podemos criar condições favoráveis à vida.
Tenho receio do que os próximos tumultuosos anos e décadas vão trazer, mas tenho muita esperança pelo facto de que podemos fazê-lo. Vamos surpreender-nos por conseguirmos ser bons a colaborar e por nos podemos unir perante a crise e transformar a presença humana na Terra, de exploradores e degenerativos a curadores e regeneradores.
Como imagina a vida em 2050?
Espero que mais lenta, mais focada na qualidade, em conexões humanas profundas com culturas e ecossistemas locais, mas também com colaboração global e, esperançosamente, usaremos o melhor das tecnologias para manter contacto globalmente. Vamos talvez viajar menos e viver uma vida muito mais equilibrada, em comunidade. Vamos cultivar parte da nossa própria comida, ajudando a restaurar os ecossistemas locais, e também novamente culturalmente expressivos. Acho que podemos ter uma vida mais rica, divertida e significativa ao voltar ao local, à comunidade, à conexão com a vida. Tenho esperança!
Daniel Wahl esteve em Lisboa a convite da Culturgest, como orador convidado na Conferência “Economia e Culturas Regenerativas”, entretanto adiada. Já tem nova data, vai realizar-se online, dia 2 de abril, às 15h00, em streaming.