Depois de 10 anos em missão em Angola e Moçambique, Sílvia Moreira é, desde outubro de 2018, a nova responsável da Província Portuguesa das irmãs hospitaleiras. São 150 em Portugal, mil no resto do mundo, espalhadas por 25 países da Europa, América Latina, África e Ásia.
Com 12 casas de saúde no continente e ilhas, a Congregação assegura boa parte da resposta que existe em Portugal na área da saúde mental. Para além das consultas têm três mil camas de internamento, e entre os seus mil e 800 colaboradores estão muitos dos mais prestigiados psicólogos e psiquiatras do país.
Em entrevista à Renascença, a irmã Sílvia Moreira fala das prioridades para o mandato de seis anos para o qual foi eleita e que, para além da sustentabilidade das obras e do trabalho com os jovens, passam pela reestruturação das comunidades e pela formação de todos os que colaboram com a congregação.
A nova responsável diz que estão a fazer “omoletas sem ovos”, porque os 42 euros que recebem de diária por doente não chegam. E lamenta que o Estado tenha desinvestido na saúde mental, quando esta é uma área que precisa de acompanhamento constante e onde há cada vez mais e novos problemas a que é preciso estar atento e dar resposta.
É desde outubro Superiora Provincial das irmãs hospitaleiras. É um trabalho muito diferente daquele a que se dedicou nos últimos anos. Já se adaptou?
Estou em processo de adaptação, creio que não vai ser uma coisa assim tão automática. É um trabalho um pouco diferente, é mais amplo. Nos últimos 10 anos estive entre Angola e Moçambique, em trabalho de missão, e seja aqui, seja lá, o nosso objetivo último é sempre o melhor bem para o doente. Mas, nesta missão não há só um centro concreto, são 12 centros em Portugal, mais dois centros em Angola e Moçambique. Por isso, podemos dizer que é uma missão diferente em termos de exigência e de amplitude, mas em termos de fim não é diferente, é o mesmo. É outra forma de estar em missão.
Foi eleita para um mandato de seis anos. Quais são as suas prioridades?
Identificámos quatro prioridades. Atendendo à taxa etária das irmãs neste momento, uma das prioridades é a restruturação das comunidades, tendo como fim a restruturação da missão e das obras. Outra prioridade é a intensificação do trabalho com jovens. Há muitos anos que fazemos este trabalho, no sentido de desmistificar a doença mental, de criar uma relação humana entre as novas gerações e a pessoa com doença, mas neste momento sentimos que é preciso intensificar a relação com Deus, levar os jovens a Deus por meio do doente. Há 20 ou 25 anos, quando me aproximei das irmãs, isto era uma coisa automática, eu encontrava-me com o doente e no doente encontrava Deus, mas os jovens que nos chegam agora, em termos de cultura religiosa, é uma realidade muito pobre. Não têm essa cultura porque não lhes foi dada.
Falta essa cultura religiosa, e também mudou a forma como se encara a doença e o sofrimento?
Sim, sim. Antes havia o receio do doente, o não querer ver, mas havia um sentido de solidariedade. Neste momento a doença acaba por ser um estado não grato, algo que eu não quero ver, não quero sequer percecionar que aquilo me pode acontecer a mim. Há uma cultura de negação do sofrimento, e a negação do sofrimento acaba por levar à negação de Deus, porque Deus faz-se presente no sofrimento do homem. Então, temos de sensibilizar mais os jovens para esta realidade de Deus, e também para a possibilidade de que Deus os pode chamar a estar ao serviço de uma forma diferente.
Um objetivo evangelizador e de dimensão vocacional?
Exatamente.
Mas, já têm normalmente muitos jovens a colaborar convosco, por exemplo através do voluntariado?
Sim, temos muito trabalho com jovens, e temos casas onde neste momento todos os fins de semana estão ocupados com jovens. Mas vamos intensificar esta dimensão que referi.
Quais são as outras prioridades?
Uma é a formação em identidade hospitaleira de todas as pessoas que trabalham connosco, a outra tem a ver com a questão da sustentabilidade das obras. Apesar das exigências serem cada vez maiores em termos de serviços prestados e cuidados, e da pouca capacidade económica das famílias, houve uma certa - como é que eu vou dizer? - talvez falência da responsabilidade social do Estado a este nível. E penso que ou o próprio Estado assume a realidade da doença como uma realidade que é o Estado que tem que responder, e responde-lhe efetivamente, ou então o Estado disponibiliza apoio a quem se dispõe a dar esta resposta.
E esse apoio não existe neste momento?
O valor da diária paga pelo Estado é de 42 euros, um valor insuficiente para o nível de cuidados que requer a área da saúde mental. É um apoio residual para aquilo que seria necessário e para a exigência que é feita àqueles que se propõem a dar este tipo de respostas. Costuma-se dizer que não se faz omoletas sem ovos, e neste momento é mais ou menos isso que está a ser exigido. Estamos a fazer omoletas sem ovos. Em termos de apoio e em termos de responder atempadamente aos compromissos que são assinados, isso não está a acontecer.
O Estado desinvestiu na área da saúde mental?
Acho que nunca houve grande investimento, a verdade é essa. Mas, nos últimos anos não é só o não haver grande investimento, é praticamente a negação da existência desta realidade. Como se esta realidade não fosse existente, e portanto não é necessário dar resposta.
Mas, a doença mental não deixou de existir…
Se calhar não existe tanto a deficiência mental, o desenvolvimento da ciência tem ajudado a prevenir uma série de coisas, há muita coisa que evoluiu e que levou a que determinadas 'patologias' não sejam tão comuns, não apareçam tanto, mas há doenças que são cada vez mais visíveis. Hoje o que nos chega muito são pessoas com problemas comportamentais, que não se pode dizer 'é uma pessoa doente'.
Por exemplo?
A automutilação, por exemplo, é uma realidade que se verifica muito em adolescentes, a busca de experiências cada vez mais de limite, que são altamente perigosas...
São patologias das sociedades modernas, a que é preciso estar atento e ter resposta em termos médicos?
Exatamente. Num dos nossos centros temos um serviço que é precisamente nessa linha de trabalho com jovens, e o que é que se verifica? Uma dependência do telefone. Então, dentro da linha do tratamento faz-se uma espécie de contrato, o telefone uma hora ou duas horas só por dia. Há uma reação de não cumprir essa norma, mas depois os próprios jovens percebem que até é bom falarem uns com os outros, não estarem isolados com o seu telefone, até reconhecem que o espaço social com o outro os ajuda. Mas, depois é assim, o que é que acontece quando saem, quando têm alta? Voltam a uma realidade que é uma realidade de solidão.
Há mais isolamento na forma de conviver, até dentro das famílias?
Sim. Quer dizer, não há convívio. É muito visível, não só nas famílias, mas mesmo grupos de jovens. Às vezes vê-se que estão sentadas numa mesa quatro pessoas, cada uma a olhar para o seu telemóvel. Estão juntos, mas não estão juntos, estão isolados. Estão juntos com outros que não estão com eles. Digamos que é a solidão na multidão.
Em termos de saúde mental, isso está a preocupar-vos também?
Muito, porque a solidão é um passo para uma série de problemas, que pode ir da depressão a outras coisas.
As irmãs hospitaleiras têm sido muitas vezes pioneiras na forma como abordam a doença mental, e têm entre os vossos colaboradores têm muitos psiquiatras e psicólogos de renome. O balanço neste sentido é positivo?
Sim, é muito positivo. Os colaboradores - médicos, psiquiatras, terapeutas - têm sido sempre equipas que comungam dos nossos valores e tentam concretizá-los, e acabam por responder e por valorizar o trabalho que fazemos, precisamente pela centralidade que tentamos dar à pessoa doente, e depois também pelas condições que tentamos criar, dentro daquilo que nos é possível.
Há uma frase do nosso fundador. S. Bento Menni, que me ajuda muito. Ele dizia 'uma pessoa vale mais que o mundo inteiro', não dizia 'uma pessoa capaz', ou 'uma pessoa sem nenhum problema', dizia 'uma pessoa', e uma pessoa pode ser uma pessoa doente, acamada, mas essa pessoa vale mais que o mundo inteiro.
A dimensão espiritual, a assistência espiritual é muito importante nesta área da saúde?
Sem dúvida. Uma pessoa com doença mental muitas vezes sente-se sozinha na sua doença. Sente que aquilo que vive não é compreendido. O facto de ter um espaço espiritual, um espaço de encontro com Deus – e Deus é aquele que tudo compreende -, ajuda a pessoa a integrar, mesmo a incompreensão externa.