Não foi bem uma “onda azul”, mas foi meia “onda azul”. A cor do Partido Democrático não inundou o país, mas coloriu o mapa político dos Estados Unidos o suficiente para dar uma dor de cabeça a Donald Trump.
Meia onda porque os democratas reconquistaram folgadamente a Câmara de Representantes (a câmara baixa do Congresso), com uma maioria que deverá atingir os 230 deputados, quando lhes bastariam 218. Mas perderam a oportunidade de fazer o mesmo no Senado. Bem pelo contrário, permitiram que os republicanos dilatassem a maioria tangencial de dois senadores que possuíam para provavelmente seis.
Uma derrota pesada, prevista pelas sondagens, e facilitada pelo mapa eleitoral, que atribuía aos democratas 26 dos 35 lugares em disputa e muitos deles em território claramente republicano onde Trump venceu por larga margem em 2016.
A América acorda, por isso, nesta quarta-feira com um Congresso dividido — uma câmara com maioria liberal e a outra com maioria conservadora — e um presidente republicano. Um cenário que já não se verificava desde 1986. Mas acorda também com o Congresso mais jovem, mais feminino e mais diversificado socialmente de sempre. Há pelo menos dois deputados com menos de 30 anos, há mais mulheres do que nunca, há uma deputada de origem índia e há gays assumidos.
Donald Trump, esse, acorda certamente com um dilema difícil de resolver: como lidar com uma Câmara de Representantes que lhe pode fazer a vida negra nos próximos dois anos.
Não é o primeiro a ter de lidar com tal situação — dos últimos 21 presidentes, 19 tiveram congressos hostis. Mas Trump é certamente o presidente que mais polarizou a vida política americana, mais apoucou os adversários e mais desprezou a procura de consensos bipartidários.
Duas estratégias possíveis
Partindo desta atitude de hostilidade, Trump tem duas estratégias possíveis: manter a oposição frontal aos democratas e vitimizar-se durante os próximos dois anos argumentando que está a ser obstruído na sua missão governativa; ou procurar consensos com os opositores, mostrar que é pragmático e que coloca os interesses do país acima de tudo.
A primeira estratégia parece a mais provável, por duas razões. Primeiro, porque lhe está no sangue viver do conflito e exacerbá-lo, sobretudo se pressentir que essa será a melhor forma de garantir a reeleição em 2020. A vitimização perante uma câmara hostil que o impedirá de avançar com a sua agenda política pode render votos de forma mais eficaz do que avançar com algumas medidas que desagradarão certamente às suas bases ou a parte delas. Segundo, porque os democratas lhe vão fazer a vida negra nos próximos dois anos e não é fácil manter um nível de hostilidade alto com o presidente e ao mesmo tempo ir negociando com ele algumas medidas legislativas.
É da Câmara de Representantes que parte a iniciativa legislativa do Congresso e portanto dela sairão certamente muitos diplomas para contrariar a agenda republicana. Mas sobretudo é da Câmara de Representantes que partirão muitas iniciativas para escrutinar o presidente. E que vão da exigência de pedir à Casa Branca que lhe forneça documentação não revelada até ao próprio processo de impeachment.
Graças a estes poderes, Trump vai passar a ser escrutinado como nunca foi até hoje, já que os republicanos pouco ou nada fizeram para fazer funcionar o sistema de freios e contrapesos em que assenta o sistema constitucional americano. A câmara tem o poder de intimar o presidente a fornecer todos os elementos considerados relevantes para qualquer averiguação. Uma intimação que será coerciva, tal como qualquer intimação judicial.
Uma das primeiras exigências será certamente obrigar o presidente a revelar a sua declaração de impostos, algo que Trump se recusou sempre a fazer. E sobre ele recaem fortes suspeitas de que cometeu várias irregularidades fiscais.
Mas as eventuais irregularidades ou ilicitudes serão investigadas por iniciativa da maioria democrata na câmara. Por exemplo, o conflito de interesses entre a sua atividade de presidente e os negócios do seu império empresarial. Que vão desde a estadia de comitivas de países “amigos” nos seus hotéis até ao seu afastamento da gestão das empresas, algo que nunca ficou muito claro publicamente.
Novas investigações à vista?
E se estes aspetos poderão dar lugar à abertura de investigações novas, a principal investigação que está no terreno — a do eventual conluio com a Rússia na campanha presidencial de 2016, conduzida pelo procurador especial Robert Mueller — poderá ganhar um novo fôlego com o empenho democrático. Sobretudo se tivermos em conta que a iniciativa do processo de impeachment ao presidente tem de partir justamente da Câmara de Representantes.
Ora, se esta estratégia democrata for posta em prática, como tudo indica, não parece plausível que haja entendimento bipartidário para aprovar medidas legislativas consensuais. E, contudo, se ambas as partes quiserem, talvez encontrem algumas em que possam convergir e resolver alguns dos problemas mais prementes do país. Como, por exemplo, um plano para recuperar as infraestruturas que estão em estado deplorável. Ou a aprovação de um salário mínimo aplicável em todo o país. Ou a reforma do sistema de justiça. Ou a introdução de licença de parto paga.
Seria um caminho que qualquer cidadão sensato acolheria com satisfação. Mas seria um caminho que viria inverter o ambiente de fanatismo tribal em que se transformou a política americana nos últimos vinte anos e de que Trump é o expoente e o sintoma máximo. Por isso, é pouco provável que se concretize, apesar do presidente ser mais um pragmático do que um ideólogo.
Mas pode ser precisamente esse pragmatismo que o leve a recusar qualquer compromisso com os opositores políticos. Basta convencer-se que o papel de vítima dos “obstrucionistas” democratas na Câmara de Representantes lhe poderá garantir mais facilmente a reeleição em 2020 do que o compromisso com eles.
Um cálculo político que os democratas também terão de ponderar pelas razões inversas. Adivinham-se, por isso, dois anos ainda mais tumultuosos nos EUA. Se é que tal é possível…