Há mais de 90 dias que João Duque deixou de usar notas e moedas. Levantou 80 euros numa caixa Multibanco no dia 5 de dezembro e desde então nunca mais se viu obrigado a procurar dinheiro físico para as suas transações.
“Andava com um porta-moedas, larguei o porta-moedas, não tenho moedas e notas já na carteira. E continuo a viver. Compro, faço a minha vida, pago tudo digitalmente”, confessa João Duque para ilustrar a forma como o dinheiro digital marca já a sua rotina. Não é caso único entre os portugueses, já que os mais recentes indicadores de diversas entidades do sector financeiro e comercial apontam para um incremento do uso de cartões “contactless” e de mecanismos de comércio eletrónico.
Ricardo Macieira, que dirige a operação portuguesa da Revolut, uma entidade financeira de dinheiro eletrónico, lembra que a sua empresa forneceu mais de 20.000 cartões virtuais para compras na chamada “Black Friday” em novembro de 2020.
"Em Portugal, cada vez mais as pessoas começam a usar essas novas ferramentas para pagamentos online, como MB WAY ou cartões virtuais. Já existem muitas ferramentas que permitem que as pessoas possam transacionar online com maior segurança. Felizmente Portugal é um país que, em termos de adoção de tecnologia, funciona muito bem. Vemos que cada vez mais há esta tendência e não acredito que vá parar nos próximos tempos”, defende o gestor da Revolut.
Para além da discussão sobre o dinheiro físico e o incremento das transações eletrónicas, o debate centra-se agora na própria emissão de moeda virtual. Se o Banco Central Europeu pondera um Euro Digital, o mercado avança com a explosão das chamadas “criptomoedas” já transformadas em ferramenta de investimento de grandes somas de dinheiro, a par de instrumentos mais tradicionais como as ações, os fundos ou matérias-primas como o ouro.
“Cuidado, é dos investimentos mais arriscados que têm para fazer. Mas cada um mete o dinheiro onde quer”, alerta João Duque na Renascença, com Ricardo Macieira a reconhecer os riscos destas operações. “Nós na Revolut, quando os nossos clientes decidem usar as criptomoedas, avisamos sempre dos riscos. Eles têm que perceber que é algo bastante volátil”, assegura no programa em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
João Duque pede “travões muito certos” em matéria de enquadramento regulatório e leva o debate para o domínio da soberania dos estados para que os contribuintes não venham a ter que salvar mais instituições financeiras.
" Não venham depois pedir-me para ser solidário e para pagar através dos meus impostos aquilo que possa ser a falência de uma instituição que depois tem que fazer face a perdas por causa das ações dos seus clientes. Os reguladores deveriam ter esta discussão e deviam dizer abertamente e já à partida que “criptomoeda só se for em determinados termos e dominada por nós”, afirma o economista do Instituto Superior de Economia e Gestão.
Entidades de criptomoedas menos supervisionadas que mercearias
Duque assinala que há já grupos de empresas que querem lançar moedas e lança críticas à forma como as criptomoedas estão a mexer com a arquitetura monetária das sociedades ocidentais.
" Então eu vou delegar um poder que é de todos, das democracias e dos estados ocidentais, onde nós achamos que somos todos iguais e temos de ter o poder de controlar aquilo que influencia a nossa vida – estou a falar da moeda – e deixamo-lo passar para o interesse de empresas detidas por acionistas que eu não conheço? Como cidadão prefiro ter 1 em mais de 300 milhões de poder dividido na Europa para conseguir influenciar de modo indireto o governador do Banco Central Europeu do que não votar absolutamente em nada e ver a moeda que uso dominada por alguém que eu não sei quem é e que tem interesses", sustenta o economista que presidiu ao ISEG.
João Duque questiona-se sobre a entidade que vai rastrear o dinheiro em criptomoedas para além das garantias de salvaguarda dos valores convertidos nessas novas moedas digitais.
"A criptomoeda em si permite o rastreamento. Mas quem é que lá vai rastrear? E quem é que me guarda aquilo ? Estas entidades são menos supervisionadas do que um restaurante em Portugal. E já nem estou a comparar com o sistema bancário. Estou a comparar com um restaurante ou uma mercearia porque aí a ASAE faz supervisão. Há um risco de desaparecimento da conta, um risco tecnológico que nós não sabemos se está acautelado ou não porque não faço ideia de quem é a contraparte. A contraparte não foi validada e não sei se é apropriada para desenvolver a tecnologia que está a oferecer", insiste o convidado do programa "Da Capa à Contracapa".
Já Ricardo Macieira, Director da Revolut em Portugal, assinala que algumas entidades que transacionam criptomoedas são reguladas e apela a que se separe o trigo do joio.
"Se somos uma entidade, também somos regulados. Há aqui alguma margem de segurança. Estão a abrir-se aqui várias áreas em que a inovação está a um ritmo super-acelerado e ao mesmo tempo há aqui um ónus em cima dos reguladores para que façam bem um trabalho e que consigam implementar regras que ao mesmo tempo permitam a inovação e garantam a segurança", remata o homem forte em Portugal de uma das mais conhecidas entidades financeiras internacionais de dinheiro electrónico.