Filipe Teles, cientista político e professor assistente do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, afirma que a designada bazuca europeia é, em Portugal, "um processo totalmente centralizado”.
Ao analisar o processo de descentralização em curso, o pró-reitor da Universidade de Aveiro critica “de forma veemente a este processo pela falta de visão integrada” e classifica-o de “tímido”.
Filipe Teles rebate “os vários mitos associados à Regionalização” e afirma que associar corrupção e aumento de despesa à criação de regiões “diz mal da maturidade democrática dos portugueses”.
Para o especialista, na discussão do mapa poderá estar “o único entrave aquilo que seria uma reforma fundamental para a administração regional em Portugal”.
Aos líderes dos principais partidos, Filipe Teles pergunta porque demoramos “tanto tempo para implementar a descentralização real em Portugal”.
Em 2019, o Governo apresentou a descentralização de competências da administração central como a “maior reforma de Estado na legislatura”, ao prever um quadro gradualista de descentralização em mais de 20 áreas de políticas públicas, a realizar em três anos. Olhando pelo retrovisor, encontra razões para corroborar aquela tese?
A forma como foi apresentada é correta. Ou seja, qualquer que fosse a reforma na descentralização, esta seria sempre uma reforma da década ou uma reforma de regime. A questão fundamental é que, de facto, o que foi proposto e o que está em curso nestas diferentes áreas é um conjunto de diplomas específicos de transferência de competências da administração central para os municípios e, em alguns casos, para as comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas que não constituem - apesar do seu conjunto - aquilo que possamos designar como uma reforma necessária conducente a um processo de descentralização. Trata-se, no fundo, de um conjunto de dossiers, de áreas de responsabilidade em termos de política púublica, muitas delas sem impacto significativo e sem a correspondente pacote financeiro.
Falta uma coordenação, uma política integrada ao nível da descentralização?
Falta. A descentralização não é um bem em si próprio. A descentralização é um processo. E é um processo que reconhece que a decisão política, a coordenação de políticas e, até, a sua avalização deve ser feita o mais próximo possível - tanto dos territórios, sobre os quais elas se aplicam, como da população que delas pode beneficiar.
Baseada neste princípio, a descentralização não pode ser vista apenas e só como um processo de transferir competências de um nível da administração central para nivéis - chamemos-lhe agora - subnacionais, sejam eles regiões, municípios, comunidades intermunicipais, etc. Não é apenas disso que se trata em matéria de regionalização.
Quando pergunta se é necessário uma coordenação mais alargada, sim. Essa coordenação implica olhar para a transferência de competência, é verdade, mas associar a isso muitas outras questões, como, por exemplo, a capacidade de as executar com financiamentos necessários, recursos humanos e recursos técnicos. Portanto, não se pode apenas transferir sem olhar à capacidade dos territórios e das designadas jurisdições locais as poderem implementar. É preciso perceber também de que forma é que estas novas competências, a este novo nível, seja ele qual for, se articulam com os outros níveis de governação. Não basta, continuando a usar o mesmo argumento, transferir determinadas competências na área da educação, por exemplo, para os municípios sem, ao mesmo tempo, estar a perceber que papel é que as comunidades intermunicipais podem ter na articulação entre os diversos municípios que a constituem. Não se pode olhar para um processo de descentralização apenas dando atenção a um dos seus componentes.
É usual afirmar-se que “quem está mais perto percebe melhor os problemas e é capaz de os resolver melhor”. A tese não perderá força quando os municípios se queixam de escassez de meios financeiros para executar as competências?
Por isso mesmo é que temos de olhar para este processo de forma integrada, como tenho sempre defendido. Estávamos a referir exatamente essa questão, quando me perguntava sobre a necessidade de coordenar. É óbvio que a transferência de uma competência para o município que não tem possibilidade sequer de a implementar da mesma forma que seria implementado por outro nível de governação só vem prejudicar a própria política publica que esteja em causa.
Falta a tal "almofada" financeira?...
Falta atribuir aos municípios a capacidade de implementação das políticas publicas. Não é apenas a "almofada" financeira: é reconhecer que há municípios que, provavelmente, já terão, do ponto de vista técnico, do ponto de vista dos recursos humanos, do ponto de vista da sua capacidade de gestão - aquilo que poderemos chamar capacidade de governo - os meios suficientes para implementar determinadas áreas de política pública ou determinadas competências. Haverá outros, noutros territórios que, provavelmente, não as têm ou têm outro tipo de necessidades. Isto até introduz uma outra questão relacionada com esta ideia de coordenação e visão integrada sobre a decentralização, que é a possibilidade de haver diferenciação de competências em função dos territórios.
Ou seja, compreende-se que haja municípios que aceitam determinadas competências e outros não as aceitem por falta de capacidade?
A forma como os municípios foram recebendo estas propostas é fácil de explicar por essa razão. Ou seja, as respostas negativas, o não acolher de forma rápida e imediata a transferência de competências tem na falta de capacidade ou no reconhecer de que é necessário mais instrumentos para a sua implementação uma das razões, mas também tem outras.
Há muitos municípios - e a própria Associação Nacional de Municípios pronunciou-se sobre esta matéria - referindo que a transferência de competências não pode ser apenas um diploma onde se estabelece determinadas áreas não discutidas, não integradas, áreas de política pública, e ser apenas um olhar técnico sobre uma competência que passa de um nível de administração para o outro. Precisa, de facto, das outras condições todas e isso é perfeitamente compreensível.
Há vários municípios que rejeitaram a descentralização de competências. Por exemplo, o Porto recusou tarefas em matéria de ação social por receio das implicações financeiras deste processo para o município...
Precisamente. E esse é um exemplo que traz ao de cima aquilo que acabou de dizer: a ausência da almofada financeira em algumas áreas de competência é uma ameaça à estabilidade financeira dos próprios municípios. Municípios esses que estão permanentemente a ser escrutinados. Se há órgãos da administração pública em Portugal frequentemente escrutinados pelos mais diferentes instrumentos da administração central são, precisamente, os governos locais. Eles estão permanentemente a ser escrutinados pelo Tribunal de Contas, direções gerais, etc. Serem chamados a assumir competências que colocam em causa a sua própria estabilidade financeira, no fundo, seria dar oportunidade para, rapidamente, estarem sujeitos às mais diversas críticas e pressões, pela não execução da política ou por derrapagem profunda na economia local e no orçamento municipal.
Não colhe aquele argumento de que os municípios são capazes de fazer o mesmo por menos dinheiro?
Não colhe. Eu diria que é um argumento diferente. Os números são muito claros quando olhamos para o papel dos municípios nas últimas décadas em Portugal, para a despesa e o retorno dessa despesa em termos de investimento em muitas áreas de política pública que não necessitam de coordenação territorial a outro nível.
Dizendo de forma mais simples... Por exemplo, em áreas onde não é necessária uma coordenação intermunicipal ou regional e em que facilmente se percebe que os municípios podem desempenhar essas funções, a afirmação prevalece. Os municípios fazem o mesmo de forma menos custosa. Se quiserem: fazem mais barato o mesmo que a administração regional ou nacional poderia fazer. Isso é perfeitamente evidente. O que estávamos a dizer é que a transferência de competências sem instrumentos financeiros que compensem essas competências não é descentralização ou não permite dar passos significativos na descentralização. Mas são coisas diferentes, porque é diferente dizer que a administração central gasta "X" a implementar determinada política pública, a gerir, por exemplo, escolas e ao transferir para os municípios passam ambos a gastar zero. Não, não é possível. Podemos é dizer que, ao ser gerido nos municípios, gastará "X menos alguma coisa" por causa desta eficiência e pela questão de proximidade e de escala. Essa afirmação mantém-se como verdadeira.
Por vezes, não dá a sensação de que o Estado central se quer ver livre de responsabilidades ao não proporcionar as mesmas condições a quem a vai executar?
Essa é uma interpretação possível e imediata. Ou seja, transferir uma responsabilidade sem a dotação orçamental parece o chamado "empurrar para baixo da mesa", aligeirar responsabilidades. Não me parece que seja essa a questão. Apesar da critica que faço, de forma muito veemente, a este processo pela falta de visão integrada, não me pareça que seja essa a motivação.
Mas não se pode responsabilizar os municípios pelo eventual fracasso no processo de descentralização?
Não. Eu reconheço as dificuldades que os municípios enfrentam quando veem um pacote com um conjunto de transferências de competências ser proposto sem nenhuma previsibilidade de receitas. É o assumir de um risco, sendo que a maior parte dos municípios, a maior parte dos autarcas, as estruturas que os representam tem sempre afirmado a importância do nível local e a disponibilidade para a descentralização, não seria normal esta reação contrária que vemos em muitos municípios. Agora, ela é justificada.
E se tivesse de classificar o processo de descentralização em curso, achá-lo-ia um fracasso?
Achá-lo-ia tímido. Tímido e com falta desta visão integrada que tenho feito referência.
Do processo de descentralização em curso, quais as áreas em que entende melhor a resistência dos municípios a aceitar competências?
Não vou falar de áreas de política pública em particular, mas há dois tipos que delegação de competências que me parecem de difícil aceitação por parte dos municípios. Todas aquelas que não tem a correspondente almoçada financeira, ou previsibilidade dessa almofada financeira. E, portanto, a justificação é muito clara. Ou todas aquelas áreas que deveriam ter sido consideradas a uma escala supramunicipal e, portanto, provavelmente, as comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas seriam muito mais capazes de as acolher e faria mais sentido porque a escala aí traz outro tipo de ganhos, nomeadamente pela coordenação de políticas em termos territoriais. Por exemplo, políticas de transporte, que já estão a ser transferidas para as comunidades intermunicipais. Não faria sentido se elas fossem transferidas para os municípios. Portanto, diria que não é uma questão de área de política pública em particular, é uma questão de reforma estruturada e integrada apresentada de uma só vez e não em parcelas.
A área da ação social que, por exemplo, o Porto recusou é uma delas?
A área da ação social faz todo o sentido que esteja atribuída aos municípios. As respostas que hoje são necessárias, até pelas grandes diferenças territoriais que encontramos no nosso país, respostas que são necessárias a problemas muito relevantes de habitação, de acolhimento de migrantes, de integração social, de desemprego, de isolamento de pessoas que vivem sozinhos e de idosos, de respostas a famílias carenciadas, etc., é claramente uma das áreas onde a atuação dos municípios pela sua proximidade, por conhecerem as respostas e as necessidade quer da população, quer dos territórios sobre os quais trabalha e tem responsabilidades, é claramente uma das áreas que deve estar sob alçada dos municípios, e ser uma responsabilidade clara dos municípios. Dito isto, para mim não é estranho, no entanto, que haja municípios que tenham dito: "Nestas condições não, de todo, não aceitamos as competências." Isso explica-se pelas razões que há pouco referi.
Encontra alguma relação entre a política de descentralização e os consecutivos falhanços na procura de soluções que visam estancar o processo de despovoamento do interior?
Vejo. Não é possível tratar um território com características económicas e sociais diferentes com olhar único. É preciso diferenciar as respostas em termos de políticas públicas em função dessas necessidades e essa diferenciação faz-se por via da descentralização.
A anunciada Regionalização pode ser um fator inicial de um processo que possa permitir inverter a tendência de procura das populações pelas grandes cidades?
A Regionalização não inverterá a procura das grandes cidades. Agora, pode permitir respostas regionalizadas de políticas públicas, sendo que há um sem número de áreas de política pública, nomeadamente por via dos incentivos financeiros da União Europeia, que hoje já têm que ter uma diferenciação regional. Não inverterá tendências, mas contribuirá para respostas que são necessariamente diferentes.
Não fica de alguma forma surpreendido que, até ao momento, não se tenha falado da "bazuca europeia", do PPR ao nível do processo de descentralização de competências?
A designada "bazuca", o Plano de Recuperação e Resiliência é um mau exemplo de descentralização porque é um possesso totalmente centralizado, em Portugal. Portanto, não estranho que não se tenha falado sobre este assunto.
Todos os partidos concordam na necessidade de uma maior descentralização, mas, depois, divergem no calendário do referendo à Regionalização e no mapa de regiões administrativas. Vai ser pelo Mapa que, mais uma vez, vai morrer o processo ou acredita que se está mais próximo de um entendimento?
Julgo que importa sermos muitos claros nisto. Porque o país tem hoje condições para avançar para a Regionalização, mais até do que condições tem necessidade para o fazer. A armadilha - deixe-me apelidar assim - que ficou na revisão da Constituição obrigando a um referendo com duas perguntas, ambas apontado para a questão do mapa, e é só isso que está em questão no referendo, ao contrário do que é prática habitual em todos os países europeus que permitem este tipo de administração regional, pode colocar, de facto, em causa um processo que me parece hoje inadiável, se quisermos que Portugal se compare aos países europeus em termos de mecanismo de administração e de governação subnacional.
Todos os países da nossa dimensão ou mais pequenos, com a nossa população ou com menos população, têm níveis de administração regional. Nós não o temos e, portanto, complicar esta questão com um referendo que questiona as populações com o mapa pode dar-lhe razão. Ou seja, pode colocar na discussão do mapa o único entrave aquilo que seria uma reforma fundamental para a administração regional em Portugal.
E que papel terá o atual Presidente da República, sabendo nós que foi um dos grandes opositores ao processo no primeiro referendo, precisamente com a questão mapa à cabeça. Vê sinais de que Marcelo Rebelo de Sousa possa agora ter uma opinião diferente?
Julgo que o Presidente não irá intervir neste processo, para além das competências que lhe são atribuídas. E assim deverá ser. A intervenção que já fez de reanunciar a possibilidade do referendo na sequência da intervenção do Primeiro-ministro no congresso da Associação Nacional de Municípios Porugueses, parece-me já sinal de que a abertura para o referendo está garantida pelas instituições nacionais. No entanto, sabemos que os principais entraves colocados na altura do último referendo pelo então presidente do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, se traduziram naquilo que é hoje a garantia que ele encontra na Constituição, obrigando a que este processo seja por via de um referendo. Portanto, diria que não irá intervir muito no processo e os receios que pessoalmente poderá ter já estão garantidos pelo processo de referendo.
Seria mais fácil colocar à discussão um referendo em que se optasse pelas cinco regiões plano?
Não sabemos o que é que virá a ser a proposta. Vamos ter, ao que parece, um ano ou mais de discussão sobre esta matéria. Há propostas que já vèm da comissão parlamentar independente de 2019, que propunha que se aplicassem as atuais regiões. Há uma experiência de décadas de sucesso na coordenação de políticas públicas por parte da administração desconcentrada, por parte das CCDR e, portanto, tudo indicaria que seria mais simples adotar o atual mapa. Como dizia, não sabemos o que é que esta discussão irá trazer, não sabemos se haverá revisão de mapa, se haverá propostas novas, mas quanto mais propostas de outros mapas, mais me parecerá difícil que o resultado do referendo seja positivo.
É fácil desmontar a tese daqueles que se opõem à Regionalização com o argumento de que acarreta mais despesa e potencia a corrupção?
Eu diria que há vários mitos associados à Regionalização e todos eles muito simples de rebater, olhando apenas para a evidência. O dos custos é óbvio. Neste momento, os custos com a administração desconcentrada do Estado, com mapas de responsabilidade e de territórios que são muito diferentes, com um conjunto de direções regionais dispersas que podem ser concentradas nas comissões de coordenação, as atuais estruturas e competências das comissões de coordenação, recursos humanos, recursos técnico, diria que a transição para um modelo de administração regional teria quase custo zero ou, provavelmente, permitiria conter gastos da administração pública em Portugal. Esse mito é fácil de rebater. E olhemos também para processos de regionalização noutros países europeus, onde o mesmo aconteceu. Portanto, não vejo por aí grande problema.
O segundo é o mito de criação de novos fenómenos de corrupção, do caciquismo. Sobre isto costumo dizer duas coisas. Primeiro, é um sinal muito mau sobre a maturidade democrática dos portugueses. Achar que ter um poder mais próximo e de ter mais capacidade de decidir democraticamente elegendo órgãos que lhe são mais próximos e que terão responsabilidades sobre áreas que lhes dizem diretamente respeito e preferir que isso se faça à distância ou que se faça com um poder central menos escrutinavel, diz mal da maturidade democrática dos portugueses. Afirmar isso é não reconhecer a importância da democracia. Mas, mais relevante, até, ou mais fácil de perceber é que a atual confusão, a atual pouco transparente administração desconcentrada, o conjunto dos órgãos que encontramos de administração publica ao nível regional já é de tal forma complexo e pouco transparente que permanecer tal como está é mais propício à criação de fenómenos de corrupção e de caciquismo do que uma opção clara evidente fácil de compreender pelos cidadãos da administração regional por via de uma regionalização.
Por último, que pergunta gostaria de fazer aos dois principais candidatos nestas legislativas?
Talvez uma pergunta sobre o passado. Porquê tanto tempo para uma reforma que é tão óbvia quando comparada com o percurso que outros países europeus fizeram nesta matéria da administração subnacional? Porquê tanto tempo para implementar a descentralização real em Portugal?
Disse uma vez que este debate devia estar hoje a centrar-se no Portugal pós-Regionalização e não num país que já está ultrapassado com os seus congéneres europeus. O combate, hoje, não deve ser por mais ou menos descentralização ou sobre se a Regionalização deve avançar. Estes deveriam ser dados adquiridos. O combate, hoje, deveria ser por um Portugal pós-Regionalização, com uma economia mais robusta capaz de responder aos desafios desta próxima década. Infelizmente, ainda estamos a discutir as condições para fazer face a esses desafios e uma das condições é a de um país mais descentralizado.