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O “grande combate” em Portugal não deve ser legalizar a eutanásia, mas minorar o sofrimento de quem está doente, defende o médico psiquiatra Carlos Braz Saraiva. Em entrevista à Renascença, o fundador da consulta de Prevenção do Suicídio, com quase 45 anos de experiência, diz que a vontade de morrer é “ambivalente” até ao fim e “a eutanásia torna irreversível algo que, ao nível do sofrimento, até poderia ser reversível”.
Tem décadas de experiência a acompanhar pessoas que, a certa altura, quiseram morrer. O que tira dessas experiências e interações?
Sou médico psiquiatra. Não sou oncologista ou intensivista. A perspetiva que eu tenho é mais centrada em pessoas afetadas por depressões ou melancolias. As minhas reflexões sobre essa matéria têm a ver com centenas e centenas de pacientes que eu segui, que em determinada fase da sua vida tiveram encontro com a ideação suicida, com a possibilidade de se tornarem protagonistas da sua própria morte. A minha mais profunda convicção é que estamos a falar de constructos que não são estáticos.
Em que sentido?
A quase totalidade das pessoas que eu segui, que em determinada fase da sua vida se confrontaram com essa eventual passagem a um ato suicida, não mantinham coerência dessa ideação ao longo do tempo, ao longo das semanas, dos meses, dos anos.
Quer dizer que o desejo de morrer não é constante?
Isso está muito bem descrito quer na literatura da suicidologia, quer na literatura dos cognitivistas. Frequentemente, usa-se o termo vulnerabilidade fluida, porque este tipo de conjeturas e de preocupações sobre a morte não é estático. Por vezes, usamos a metáfora de um cursor, que vai e vem, em que às vezes o paciente quer tudo e o seu contrário, simultaneamente quer abarcar todos os mundos. Podemos dizer de uma forma mais correta que se trata da ambivalência suicida das pessoas que estão a passar por situações de melancolia. Isso faz parte da prática clínica do mundo da psiquiatria.
Enquanto psiquiatra especializado na prevenção do suicídio, como encara a questão da eutanásia?
Acima de tudo, o psiquiatra é também um médico e, por definição, é pela vida. Dediquei grande parte da minha vida a estudar as questões do suicídio, mas isso apenas significa a valorização da vida, daquilo que é mais importante para o ser humano numa perspetiva humanista, de solidariedade, compaixão, espiritualidade, e isso é que permite enaltecer as vivências de todos nós como cidadãos.
A eutanásia, ao ser considerada, é algo que vai contra a perspetiva que eu considero de valorizar a vida, porque é tornar irreversível algo que, por exemplo ao nível do sofrimento, até poderia ser reversível.
A sociedade está esclarecida? O debate tem sido suficiente?
Verificamos muitas vezes na opinião pública e publicada uma certa confusão entre suicídio, suicídio assistido e eutanásia ativa, passiva e todas as outras vertentes da eutanásia. Muitas vezes, as pessoas estão a falar de algo que efetivamente poderá estar nas fronteiras, do ponto de vista conceptual, mas são situações diferentes. Na minha perspetiva, esse ponto tão simplesmente quer dizer que há um défice de debate em relação a estas matérias, que careceriam de um maior esclarecimento, de uma melhor consideração dos limites em relação aos aspetos conceptuais.
Há falta de debate e de esclarecimento na sociedade em geral sobre estas matérias, que devem ser abordadas, mas de uma forma serena, despojadas de ideologia ou de religião. Na minha opinião, é apenas uma perspetiva humanista que me move e também de acordo com a minha experiência clínica de quase 45 anos.
Num dos seus artigos sobre esta questão diz algo como "não à eutanásia e não ao sofrimento".
É a procura de uma síntese. Claro que todas as sínteses são muito atrevidas, mas no fundo no fundo é uma fórmula que alguns colegas meus e pessoas da sociedade civil consideram um pouco utópica, mas que eu, apesar de tudo, e como sou um otimista por natureza, entendo que é possível.
Muitas vezes falamos destas matérias, mas está-se a construir a casa pelo telhado, porque havendo um défice significativo no país de unidades de cuidados paliativos, ficará sempre a dúvida se estamos a fazer tudo o que podemos por pessoas que estão a sofrer por estarem isoladas, por fragmentação social ou familiar, ou por dores incoercíveis. A pergunta então é: estamos ou não a fazer tudo o que podemos? E a minha opinião é que, enquanto sociedade, não estamos a fazer tudo o que devemos para minorar o sofrimento destas pessoas.
Esse texto que escrevi recorda que nós temos ao nosso alcance, desde 2012, as chamadas diretivas antecipadas de vontade, também conhecidas por Testamento Vital, que permitem que todos nós, cidadãos, de uma forma esclarecida, livre e consciente, possamos decidir, determinar, que no futuro, por uma situação de doença grave, não queremos práticas de distanásia ou de encarniçamento terapêutico.
Por outro lado, eu termino esse texto socorrendo-me de um poema muito curioso do poeta João Gomes Ferreira, que diz: 'Ah, se eu pudesse suicidar-me por seis meses'. É aquilo que muitas vezes nós, psiquiatras, encontramos na prática clínica. É um pouco aquela ideia do hibernar quando alguém sofre - e isso é que inquieta o ser humano, é o sofrimento, a dor psíquica. É como uma possibilidade que a pessoa tem de interromper o seu sofrimento por algum tempo, a ideia da reversibilidade desta condição de sofrimento, tal e qual como se, por exemplo, fosse um urso que estivesse a hibernar e que pudesse acordar na próxima primavera.
Em relação às pessoas com princípio de demência, acha que as propostas dos partidos sobre eutanásia são claras ou levantam-lhe questões?
Todos os projetos me levantam grandes questões. Se há partida eu me posiciono contra a eutanásia, todos me levantam grandes questões, mas num processo demencial em curso há alterações do lóbulo frontal e da capacidade crítica daquilo a que se chama a capacidade do entendimento, da clarificação, da capacidade para o livre arbítrio. Isso está prejudicado.
Nem todas as propostas preveem a intervenção dos psiquiatras em todo o processo.
Na minha opinião, a existir [eutanásia] teria de ser obrigatório, precisamente por causa das alterações da consciência e das questões da melancolia, das depressões graves, porque o que as pessoas pensam hoje não tem que ser inabalavelmente o que vão pensar amanhã. Isto é muito frequente. Se formos ver aquilo que dizem várias escolas que se têm dedicado às questões da suicidologia e da ambivalência, verificamos que há grande oscilação em relação a essa alegada convicção da ideação suicida. É um ponto a que eu chamaria particular atenção.
O que pensa sobre o facto de a obrigatoriedade de informar previamente a família também não estar inscrita na maioria das cinco propostas?
A pergunta é muito interessante e coloca algumas questões que têm a ver com aquilo que, vulgarmente, se chama o homem pós-moderno. Nós estamos a falar do homem depois da II Guerra Mundial, que vive na tecnologia, que viu Hiroshima, a guerra hedionda com consequências perversas e que, de algum modo, achou que era dono de si próprio, num exercício muito egocêntrico, muito narcísico. Esse mesmo homem acha-se impregnado de direitos e menos impregnado de deveres.
Estamos aqui a ter uma perspetiva muito mais individualista do ser humano e muito menos valorizado o aspeto coletivo. A família é um sistema natural onde as pessoas convivem e coabitam, com ligações afetivas, umas mais duradouras do que outras, mas indiscutivelmente existem vínculos.Na minha opinião, este tipo de situação anómala que está a ser criada obviamente interfere com as pessoas queridas da proximidade e nós não podemos ficar focados apenas nesse egocentrismo e nesse individualismo, temos de ter a visão de conjunto, a visão do sistema, ou seja, a visão da família.
Esta semana ouvimos na Renascença o testemunho de uma pessoa que teve um problema grave de saúde, que pensou em morrer, mas foi acompanhado e mudou de ideias. Já enfrentou casos semelhantes?
Muitos casos de pessoas de pessoas que queriam morrer, que se queriam suicidar. De facto o suicídio não é crime no nosso ordenamento jurídico, mas é possível, na maior parte dos casos, felizmente, através de psicoterapias ou de psicofármacos que atuam no sistema nervoso central, reverter esse trilho de ideação suicida. Nem sempre é uma tarefa fácil, obedece muitas vezes a algumas competências mais específicas, mas criar proximidade e criar alternativas são duas regras elementares que devem ser implementadas.
Por outro lado, é preciso não nos esquecermos de algo que é muitíssimo importante: ninguém morre para ser ignorado e estas coisas também não nascem do vazio. Por isso, se nós tivermos a preocupação de fazer acompanhamento, de dar apoio, de tirar a dor -- porque isso é de facto o grande sofrimento, não só a dor física propriamente dita, mas também a dor psíquica--, se tivermos a oportunidade de minorar essa angústia dilacerante, naturalmente que vamos conseguir reverter essa ideação suicida. Reparemos no seguinte: as pessoas, por norma, temem o desconhecido, temem aquilo que não controlam e a morte é o desconhecido, aquilo que não se controla. Portanto, temos oportunidade de, através desta tal proximidade, e para isso socorremo-nos de afetos, de disponibilidades. E a sociedade civil e a política social e de saúde do país podem e devem ter um papel muito importante no minorar do sofrimento destas pessoas. Esse é que é o grande combate, na minha opinião, esse é que é o grande desafio e, frequentemente, não vimos nem ouvimos abordar estas questões conforme deveriam ser abordadas.
A legalização da eutanásia pode abrir uma “caixa de pandora”? Preocupa-o a possibilidade da chamada “rampa deslizante”, como aconteceu na Bélgica e Holanda?
Eu penso que esse é um risco. A rampa deslizante é um risco. Muitas vezes pensamos que determinados tipos de perspetivas são apenas do imaginário, mas reportando-nos por exemplo a determinadas ideologias - e estou a pensar no nazismo - que olhavam muitas vezes, e não sei se olham ou vão olhar, para as pessoas que não produzem como descartáveis, como inúteis, como pessoas que já não têm qualquer interesse, e o risco - e estou a pensar por exemplo em idosos - de haver essa deriva, esse resvalar, é na minha opinião um risco que não é desprezível.