Eu sei quem é a mãe que deixou o bebé no lixo. Reconheço o ideal-tipo. Sei de onde vem, conheço a miséria económica e mental que soterra uma pessoa neste entulho infernal. Visualizem esta hipótese, sim, visualizem comigo esta rapariga: ainda é menor; no máximo, tem vinte anos. Esta rapariga tem uma mãe que engravidou sem saber por onde saem os bebés. Não acreditam? A vossa descrença está errada.
No passado, na geração das nossas mães, muitas mulheres pobres engravidavam antes de saberem o que é um parto. Qualquer tema relacionado com o sexo era um tabu insuperável entre mães e filhas. O tabu começava na própria menstruação, vista como uma maldição feminina, um sangue sujo que conspurcava as mulheres e que confirmava a sua inferioridade moral perante os homens. Curiosamente, no mundinho “clean” e moderno da net, qualquer imagem com sangue menstrual é de imediato censurada.
Estas mães da geração anterior continuaram na miséria económica e, sobretudo, na miséria moral e na respectiva diabolização de qualquer conversa sobre sexo. As suas filhas foram educadas nos mesmos pressupostos. Sim, ainda há raparigas que crescem sem um mapa do seu corpo. A nossa rapariga é uma delas. Visualizem de novo comigo: esta rapariga é miserável, vive isolada e destratada, é tímida e muito gorda; a seguir, visualizem um homem, um padrasto, um vizinho, um irmão, um tio, um vizinho, um pai ou um avó que pressente a timidez da rapariga.
O predador é assim. A rapariga é violada uma ou várias vezes. Ela não diz nada à mãe ou irmã ou tia, porque tem medo de expor o pai, o padrasto, o irmã, o meio irmão, o vizinho, o tio. Ela não percebe o que se passa, ela nem sequer conhece a palavra “violação”, que lhe permitiria contestar moralmente a situação. E, mesmo que conheça a palavra, recusa verbalizá-la. Ela não conhece o seu corpo. Nunca ninguém falou com ela. Ele não percebe porque é que deixou de sangrar de mês a mês, até fica aliviada por isso, e não vê nada de mais no seu corpo porque foi sempre muito gorda. É por isso que a gravidez cresce incógnita. Ela não percebe. Os outros não reparam. Sempre foi gorda. Sempre usou roupa larga. Sempre comeu muito. Nos meses finais, ela sente aquela criatura a mexer, mas não diz nada. Está apavorada.
Conseguem visualizar esta descida ao inferno? Têm a força necessária para criar esta empatia? Se têm, podem continuar a ler. Se não têm, não leiam mais.
Rompem-se as águas. Ela entra em choque. Não sabe o que pensar ou fazer. Provavelmente, tem a criança sozinha numa cave, numa arrecadação, num prédio devoluto entre plásticos, seringas e ratazanas, ou num descampado, como um animal qualquer. O bebé não nasceu, foi parido. A seguir, ela coloca o bebé no lixo. Comete o erro de ir ao hospital? Esperemos que sim. Através deste ou de outro erro, podemos salvá-la. Salvar antes de punir, por favor.