Mia Couto considera que, sozinho, Moçambique não consegue responder à vaga de violência que se vive na região de Cabo Delgado. O escritor, que vive em Maputo, denuncia atentados contra a Humanidade naquela região e admite que aos moçambicanos só resta “pedir socorro”.
Em entrevista à Renascença, o autor chega a afirmar que é “mais grave do que a pandemia”, aquilo que se passa em Cabo Delgado.
Impedido de viajar por causa das restrições da Covid-19, Mia Couto fala ao programa “Ensaio Geral”, à distância de um computador sobre o seu novo livro, “O Mapeador de Ausências”. Pensou em desistir do livro onde revisita a sua Beira natal.
A escrita foi apanhada pelo destruidor ciclone Idai. Foi a força do exemplo da população que o fez terminar o livro. Sobre o futuro pós-pandemia, o também biólogo Mia Couto diz que a vacina será “abençoada”, mas mostra-se preocupado com a crescente resistência aos antibióticos.
Porque quis escrever agora sobre a sua terra Natal, a Beira, e revisitar as suas memórias de infância neste “O Mapeador de Ausências”?
Tenho que confessar que já estava a ser desafiado há algum tempo para fazer contas com esse passado e prestar homenagem a um lugar que foi muito especial. Todos os lugares onde se nasce são especiais. Eu percebia que continuava a nascer nesse lugar. Cada vez que eu voltava à Beira, havia uma parte de mim que se revelava. É como se a Beira fosse um livro. É assim que acontece com os livros, eu revelo-me neles. Eles explicam quem eu sou. Sei que isto é um bocadinho romantizado, mas para mim é verdade.
“O Mapeador de Ausências” remete muito para o passado, para os que já não estão. Diz no livro que o escritor é um "inventor de esquecimentos". Foi buscar as personagens a essas ausências?
O título foi-me surgindo porque me fui apercebendo que estas pessoas que me marcaram têm uma espécie de impressão digital na alma presente em mim. Aquilo que parecia ausente, esta gente que saiu a vida sem peso, afinal são o meu mapa. São a minha cartografia de sentimentos e do meu modo de pensar. Há ali uma homenagem ao lugar da Beira e à própria infância, onde eu fui abraçado e aprendi a contar histórias com os meus pais.
Estava a escrever este livro quando há mais de um ano se deu o ciclone Idai, que devastou a região da Beira. Esteve lá na altura?
Sim, eu já ia adiantado na escrita do livro, ia a mais de metade quando aconteceu o ciclone. O avião em que eu viajei foi desviado, foi para o norte, depois voltei nesse mesmo avião três dias depois. Já se podia aterrar na cidade. Foi um sentimento muito estranho porque, de repente, vi uma parte da cidade submersa e a outra parte estava destruída. De repente pareceu-me que esse livro que eu tinha encetado, ia morrer ali. Já não havia território da minha infância. Quando depois voltei, senti um grande encorajamento. As pessoas tinham metido mãos à obra e estavam a superar-se a si mesmas. Isso foi uma grande aprendizagem e incentivo para acabar o livro.
E como está a Beira agora, passado mais de um ano sobre o ciclone?
Acho que tudo o que depende do esforço das pessoas particulares, está a acontecer. Se visitar a cidade, é difícil perceber que houve essa tragédia. Agora, tudo aquilo que só pode ser feito com o esforço do Estado, com dinheiros que muitas vezes vêm da comunidade internacional, tudo isso não está ainda feito. Estas coisas são muito dolorosas.
A convocação desse dinheiro, depois a administração e a maneira como é aplicado, leva meses e meses. Já estávamos avisados que o processo ia ser muito lento, mas nunca imaginamos que ia ser tão lento. Depois entre a promessa que se faz e o dinheiro real que entra, há sempre qualquer coisa que serve de justificação. Entretanto, a Covid-19 fez com muito dinheiro que estava prometido acabasse por não chegar à cidade.
A personagem principal do livro, o Diogo Santiago, diz: "sofro do pior castigo que pode ser dado a um escritor: o meu cérebro e a minha mão se desentendem sobre o modo como escrever a mais pequena frase”. Também padece deste mal?
No meu caso, quase nunca (risos). Este personagem, este Diogo, acaba de facto de ser muito eu. Houve uma altura em que eu tive uma espécie de esgotamento e tive de enfrentar essas dificuldades, mais do que o habitual. Agora, não me angustia isso, desde que não nos paralise ou desencoraje. Esse desencontro, o não saber, para mim faz parte do processo de escrita. Se eu soubesse, se fosse fácil acertar a mão e o cérebro, se fosse fácil ter tudo projetado, acho que não me apetecia escrever! A dificuldade, a impossibilidade, esses sim, são um desafio.
O pai do Diogo Santiago era um poeta. Escreve no livro que "a poesia não é um género literário, é um idioma anterior a todas as palavras". A poesia tem um lugar especial na história deste livro, onde fala do passado colonial, da PIDE.
A poesia é o que costura tudo isso. Assumo, sem nenhuma dúvida, neste momento da minha vida, que isso a que chamamos memória é de facto um conjunto de reinvenções, são escolhas que fazemos. Escolhemos esquecer aquilo que já não queremos visitar ou não queremos ser visitados por esses fantasmas ocultos. Trabalhei neste livro sabendo que há certas coisas que só se tornam verdadeiras quando são reinventadas.
Revisita o passado colonial. No atual contexto em que há uma tendência de apagar certos factos da História colonial. Acha que há portugueses que poderão não levar a bem a forma como retrata esse passado?
Acho que não. Os portugueses que estão ali, há bons e maus. Há portugueses que lutam contra a guerra colonial e contra o sistema e acho que fica muito mais presente essa irmandade, esse esforço solidário de superar essas condições cruéis da História, do que o reavivar de feridas. Acho que é importante nós percebemos que esse passado não está tão longínquo, principalmente porque há agora uma tentativa de branquear e apagar esse lado da História. É bom que de um lado e de outro estejamos juntos a assumir que essa História foi uma História que nos separou e nos uniu também.
Mas há hoje um risco de apagamento da memória histórica?
Há um conjunto de pessoas muito revoltada, porque não se reconhece na versão oficial da História, que desata a partir estátuas e pensa que partindo os símbolos, derruba o que corporiza o lado da História dos vencedores. Desnecessariamente estão a criar ódios. Se por acaso, nós falarmos dos dois lados da escravatura, vamos perceber de maneira tranquila, serena, que não se trata de apontar culpas, mas de perceber que a escravatura foi feita a duas mãos. Há elites africanas que participaram, colaboraram e enriqueceram com a escravatura. Se a gente não tiver a disponibilidade para revisitar essa História, e a quisermos branquear - é este o termo - então, nada feito, andamos a rodar em seco!
Não pode vir a Portugal apresentar este livro, por causa da pandemia. Como está a situação aí em Moçambique?
A situação nunca foi tão dramática como em Portugal, nos Estados Unidos ou na Europa. A pandemia tem-se manifestado de uma forma muito mais benigna do que no continente europeu. Sofremos sim, mas também porque estas medidas têm de ser tomadas em conjunto com o mundo. Não teríamos necessidade de fazer um confinamento, mas estamos num mundo que é global e não podemos viajar, nem partilhar desta presença física que era uma espécie de festa, antes.
Como biólogo, como é que olha o futuro, pós pandemia e a vacina contra a Covid-19?
Essa vacina será abençoada, mas mais uma vez pensamos que a tecnologia e a ciência são a salvação. São, mas não teremos salvação se não revermos o nosso conceito sobre a natureza. É preciso pensar que a natureza não é aquilo que surge claro e visível à nossa escala. Este vírus veio dizer-nos que a natureza é, sobretudo, a parte não visível.
Os operários que todos os dias refazem os mecanismos básicos da vida, a fermentação, a respiração celular, tudo isso, são bactérias e vírus. Esses é que são os grandes maestros da vida.
Acho que é importante ter esta visão, porque temos de descentrar e para percebemos que a medicina do futuro é a que ocorre ao nível do não visível, do molecular. Uma coisa que se prevê como mais grave do que a pandemia é a ausência de eficiência dos antibióticos. Prevê-se que dentro de 10, 15 anos, as resistências aos antibióticos serão de tal maneira que podemos estar perto do nosso fim.
Têm chegado diariamente relatos de violência em Moçambique, na região norte de Cabo Delgado. A população foge da violência, há notícias de decapitações. Como é que vê o que se passa em Cabo Delgado.
Isto é um drama que temos dificuldade em compreender que esteja a acontecer em Moçambique. É um drama numa proporção que é bem mais grave do que a pandemia de Covid-19. Nós, temos todos os dias sinais de que isto não é uma guerra que se faz e que se ganha por via militar.
Não temos nenhuma possibilidade de entrar em negociação com estas pessoas que estão todos os dias degolando, desmembrando ou usando uma violência que não tem nome. Isso causa-nos um sentimento de impotência enorme. A primeira grande tentação é pedir socorro. O contorno e a dimensão que esta agressão tem, faz adivinhar que sozinhos não seremos capazes de fazer face a isto.
É necessária uma intervenção internacional?
Sem dúvida. O que está aqui em causa, não é Moçambique, nem Cabo Delgado. O que está aqui em causa, é toda a Humanidade e o respeito pela vida. Já não digo, o respeito pela democracia, mas o respeito pela vida humana. É isso que está em causa. Estas pessoas, nem se quer sabemos lhes dar um nome. Chamamos insurgentes, agora chamamos terroristas, mas o ponto é que não percebemos se há aqui um projeto político que é claro e com o qual se possa dialogar. Neste caso, não existe a possibilidade de dialogar com o outro lado.