“Sou muito cabeçudo, estava com medo que isto não entrasse.” Foi com humor que Herman José recebeu a medalha de mérito cultural, de um "Governo hiperdemissionário" no dia em que faz 70 anos, que terminou com um cântico de “Parabéns”.
Na cerimónia no Palácio de São Bento, António Costa considerou Herman um “caso singular de longevidade televisiva” que “formou e influenciou gerações de atores”.
“As muitas personagens que criou e interpretou permanecem hoje na memória coletiva, bem como frases e expressões que repetidas de episódio para episódio entraram na fala do dia a dia dos portugueses”, afirmou, na sessão de condecoração onde também esteve o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva.
Em discurso antes da condecoração, o ainda primeiro-ministro disse que o humor “é vital para qualquer sociedade democrática”, por colocar à prova a liberdade de expressão. “Fazer humor é, por vezes, um ato de coragem”, sublinhou.
No início do discurso, Herman José temeu que a medalha de mérito da cultura não entrasse pelo pescoço, por ter a “maior cabeça do teatro português, depois da morte de Costa Ferreira”. “São 63 centímetros de diâmetro”, disse.
Leia o discurso de Herman José na íntegra:
"Estive durante toda a noite a pensar no que poderia dizer numa situação destas que não soe a pretensiosismo. Há dois tipos de humoristas: o académico, que nasce pessoa normal e que ao longo da vida querem ser humoristas e vão lendo coisas e tentando escrever, melhorar, e acabam por ter carreiras interessantes; o meu caso é diferente, nasci com uma doença chamada humoristite aguda, a tendência natural para o disparate sempre, em todas as ocasiões.
E cedo comecei na Escola Alemã a imitar professores, muito bem, com quatro, cinco, seis anos, e logo aí percebi como funciona o ser humano em relação ao humor. Havia três tipos de professor: o que gostava, que achava engraçado, mas não vibrava muito; os que gostavam mesmo e achavam divertidíssimo; e os mais perigosos, que não diziam nada, faziam só um sorriso à Mona Lisa e iam por trás ver uma maneira de já não haver momento de humor na festa.
Aí percebi que havia, em alguma percentagem da humanidade, uma causa-efeito e que havia sempre a hipótese da nossa liberdade humorística, mesmo que nos parecesse importante, fosse coartada.
Passados uns tempos, saí da mesma coisa precisamente com o ‘Humor de Perdição’, em que alguém foi por trás silenciosamente dizer: ‘Tirem lá do ar o programa do rapaz, que nos está a incomodar.’ Fiquei desolado, mas recebi um telefonema de um homem que era Presidente da República, Mário Soares, uma personagem única, que disse: ‘Epá, vocês sabem o que lhe fizeram? Estes gajos são malucos. Oh Herman José, não posso fazer nada. Você aguente-se, está a ouvir? Que isto mais tarde ou mais cedo dá a volta’. Passado quatro anos, em 1992, volta-me a ligar. ‘Quer ser condecorado? Prepare aí o 10 de junho. Você merece tudo, ainda na semana passada me fartei de rir consigo.’
Daí para cá, a minha vida foi um vazio. Até ao momento em que recebo uma chamada do ministro da Cultura. Já com uma voz colocada de maneira diferente, a dizer ‘tínhamos muito prazer em condecorá-lo’. Devo dizer-vos que a felicidade que senti, neste momento, com esta atitude teve a mesma intensidade que senti em 1992. Sobretudo potenciado pelo facto de ser de um Governo que está hiperdemissionário. São pessoas que daqui uns dias não mandam nada, nada. Têm que devolver as mobílias, tudo. Tira-me aquela tristeza, aquela preocupação de me estar a ligar: “Oh Herman José, vou precisar de si para encontrar um novo sítio para o aeroporto”. Ou pior, ligar-me o ministro das Finanças, Fernando Medina, a dizer: ‘Oh, Herman, tenho aqui um problema. Tenho quatro mil milhões de euros a mais, não sei como gastar isto.’
Quero agradecer-vos imenso esta honra imensa. Agora vem a parte intelectual do discurso, se me permitem.
Há um rapaz que escreveu umas coisas e ganhou um prémio Nobel, chamado Octávio Paz. Ele disse muitas coisas em que me revejo, menos esta. Disse uma vez que ‘os prémios domesticam o criador independente, cortam as asas do inspirado e castram o rebelde’. Pois eu discordo. Estes momentos alimentam amor próprio, dão asas para que não deixemos de voar e carregam-nos as pilhas da rebeldia. Muito obrigado por isso."