Os barcos que fazem a ligação fluvial entre o Barreiro e Lisboa estão outra vez encostados: os mestres decretaram uma greve total durante três dias, em cima de uma outra às horas extraordinárias, iniciada no sábado e que se prolonga até ao fim do ano. Querem que o Governo e administração da Transtejo/Soflusa cumpram o acordo firmado a 31 de maio e que lhes dá mais 60 euros no subsídio de chefia.
Esse subsídio foi suspenso porque não tem cobertura do Acordo de Empresa e, consequentemente, ocobertura rçamental. Há uma "guerra" contra o Governo e administração, mas também contra outra classe profissional da tripulação: os maquinistas.
Esta "guerra" sem fim atinge, sobretudo, as dezenas de milhares de passageiros que todos os dias precisam de atravessar o Tejo - dizem-se "fartos" dos mestres e da Administração, que consideram incompetente e incapaz de resolver o problema.
Entretanto, começam a ouvir-se as acusações que, até há pouco tempo, eram apenas “cochichadas”: há um grupo de mestres que impõe as regras para a efetiva concretização das formas de luta que decide. A bem ou a mal.
O poder do “grupo de Sarilhos”…
Desde 10 de maio que os passageiros da Soflusa vivem uma espécie de lotaria diária, sem nunca saber se, de manhã, têm barco para ir para Lisboa trabalhar, estudar ou tratar da sua vida e se, ao fim do dia, conseguem regressar a casa, tantas são as supressões e atrasos nas carreiras devido a falta de pessoal para completar tripulações ou às greves dos mestres.
Certo é que têm que contar, agora, com muito mais tempo para as suas deslocações entre as duas margens. E a questão tem sido discutida (também) em sessões de câmara - algumas extraordinárias - e na Assembleia Municipal.
Na sessão de 26 de junho deste último órgão autárquico, o deputado municipal socialista Isidro Heitor acabou por fazer uma afirmação que se tornou viral: “Temos um problema sindical e laboral na Soflusa e os barreirenses vão sofrer muito com isso. As pessoas têm que saber que, por vezes, a vida de milhares de barreirenses se decide por meia-dúzia de pessoas, num café de Sarilhos.”
Isidro Heitor, também antigo administrador da Transtejo/Soflusa, afirmou, assim, publicamente, o que já se ia ouvindo, aqui e ali, há muito tempo, mas “à boca pequena” sobre o imenso poder de um pequeníssimo grupo dentro de uma categoria profissional com pouco mais de duas dezenas de trabalhadores.
Mais de metade dos mestres da Soflusa nasceu, vive ou tem relações familiares ou muito próximas na localidade de Sarilhos Pequenos, no concelho da Moita. Boa parte chegou à empresa fluvial por influência de um antigo mestre, há mais de vinte anos. E, entre eles, há um “núcleo duro” que foi ganhando peso dentro do Sindicato dos Fluviais e Costeiros e impõe formas de luta sucessivamente mais “pesadas”, com o objetivo de pressionar a administração da empresa para a obtenção das suas reivindicações, mas que acabam por afetar os utentes.
… e as alegadas pressões
Nem todos os trabalhadores, e mesmo alguns dos mestres, apoiam formas de luta tão intensas e prolongadas. Embora sem querer dar a cara ou a voz, várias pessoas têm referido à Renascença as pressões a que alguns trabalhadores serão sujeitos para não “furar” as greves. Mas Paulo Rodrigues, maquinista e coordenador da comissão de trabalhadores da Soflusa, dá a voz e assume que “há, sem dúvida pressões”, acrescentando que “nesta empresa, um colega que não faça o que os outros estão a fazer é sempre muito mal visto”.
No entanto, este sindicalista recusa-se “a especular sobre eventuais ameaças físicas ou de outro género a trabalhadores ou pessoas próximas”. Entre os três membros da Comissão de Trabalhadores inclui-se um mestre e o coordenador considera que para ele “também é muito difícil gerir a situação”.
Mestres incómodos
Cada tripulação tem um mestre, um maquinista e dois marinheiros. Para garantir a realização de todas as carreiras, a Soflusa devia ter 48 marinheiros, 24 maquinistas e 24 mestres. Mas estes últimos são apenas 21 e alguns estão de baixa por doença há algum tempo. Recentemente, segundo apurou a Renascença, um dos mestres reformou-se. Também faltam marinheiros.
A custo e depois de greves dos mestres, a administração presidida por Marina Ferreira conseguiu autorização do Ministério das Finanças para contratar seis marinheiros e abriu concurso interno para quatro mestres (que evoluem da categoria de marinheiro). A Renascença apurou que concorreram sete marinheiros, mas dois chumbaram. Entre os restantes, quatro já estarão em formação para reforçar as tripulações em breve.
A vida dos passageiros complicou-se especialmente a partir de maio e a insatisfação de algumas pessoas mais exaltadas está marcada nas instalações destruídas no Terminal do Barreiro, mas revela- se também nas redes sociais, com o governo, a administração e os mestres como alvos privilegiados. Não faltam desabafos mas também insultos, provocações e até apelos à violência, particularmente no grupo do Facebook “Contra os abusos da Soflusa aos passageiros”.
O mal-estar levou os mestres a responder pela mesma via, com um “Esclarecimento aos utentes” em nome da sua “honra e dignidade”, lembrando que têm família “para quem não é agradável ver os comentários e os adjetivos usados para denegrir a sua imagem”.
No entanto, mesmo no meio sindical, o Sindicato dos Fluviais e Costeiros e muito especialmente a autodenominada “Comissão de Mestres”, criada há pouco mais de três meses, são cada vez menos tolerados. Os outros sindicatos associados da FECTRANS, liderada por José Manuel Oliveira, nomeadamente os que também representam interesses de outras classes profissionais da Soflusa, contestam a atitude dos mestres, por exigirem uma valorização salarial exclusiva. Mesmo para a CGTP é uma situação muito incómoda: por um lado, o direito de um grupo de trabalhadores a lutar pelos seus interesses; por outro, o facto de com as suas formas de luta, os mestres prejudicarem muitos milhares de outros trabalhadores, para além do aceitável e razoável, chegando ao ponto de haver pessoas a ter o seu posto de trabalho em risco ou não conseguir emprego… por morar no Barreiro.
Mestre ou maquinista: afinal, quem é mais importante a bordo?
Os mestres são os representantes da empresa (armador) a bordo, chefiam a tripulação, coordenam o serviço a bordo e assumem as responsabilidades sobre o que se passa dentro do navio perante as autoridades policiais e marítima. É o que frisam no “Esclarecimento aos utentes da Soflusa” já referido e justificam por isso, o “prémio de chefia” que a empresa decidiu atribuir-lhes em 2005 (na altura 43 euros) que é, atualmente de 49,44 euros.
Por seu turno, os maquinistas reivindicam para si o trabalho de maior responsabilidade a bordo e num outro esclarecimento do SITEMAQ – Sindicato da Marinha Mercante, Indústrias e Energia – que representa a maioria dos profissionais desta categoria na empresa fluvial, deixam claro que o mestre “não chefia o Chefe de Máquinas e muito menos a vasta secção de Máquinas, por falta de capacidade profissional, habilitação ou reconhecimento legal”, resultando assim duas chefias autónomas, uma do Convés, outra de Máquinas. E especificam as diferenças de habilitações académicas e horas de formação, além dos anos de embarque necessários para chegar ao topo da carreira: o dobro para o maquinista (cerca de seis anos) em relação ao mestre (três anos), no mínimo. Em qualquer caso, sem promoções automáticas, sujeitos a concurso e aprovação.
O mestre apenas pode comandar embarcações no tráfego local (neste caso concreto, no Tejo,) mas o maquinista pode exercer a sua profissão em qualquer navio ou lugar. Paulo Rodrigues vai mais longe e frisa que os maquinistas são os primeiros a entrar no navio para ligar motores e confirmar todas as condições de segurança na operação. O mestre só pode sair do pontão quando o maquinista o informar que está tudo a postos e “na ponte há duas cadeiras, uma para o mestre e outra para o maquinista, sendo que este último tem que sair para a Casa das Máquinas em caso de alerta do sistema de segurança”. Além disso, argumenta que o maquinista pode fazer leme mas o mestre não sabe mexer nas máquinas e revela que “há um mês, quando o mestre se sentiu mal a meio do percurso, foi o maquinista que atracou o barco em segurança, ainda por cima, de noite”.
Mestres agora ganham mais mas nem sempre foi assim
As ligações entre as duas margens do Tejo remontam a meados do sec. XIX e eram feitas em barcos a vapor. Mas só se tornaram regulares quando o Barreiro se impôs como terminal da rede de caminhos de ferro para o sul do país, em fase de construção nos anos 60-70 de 1800. No início do séc. XX, ainda em plena monarquia, a Companhia dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste tinha dois barcos – o D. Afonso e o D. Carlos – com 16 tripulantes, entre os quais, dois mestres e dois maquinistas. Os mestres ganhavam 1$000 (mil réis) por dia e os maquinistas, 1$100 réis.
A diferença manteve-se com a República, até 1940, altura em que as duas categorias passaram a receber um salário base igual. Ainda assim, os maquinistas tinham um acréscimo de 15%, com o subsídio de gases.
Em 1975, a OMS – Organização Mundial de Saúde - classificou este tipo de ambiente de trabalho nas máquinas como “tóxico” e os maquinistas passaram a receber igualmente 1,3 litros de leite para atenuar os efeitos. O que provocou uma questão logística: o leite azedava rapidamente e, por outro lado, não era propriamente a bebida preferida dos trabalhadores, que nem sempre a levantavam. Para facilitar a vida a todos, passaram a receber o equivalente, em dinheiro. E foi nessa altura, já em plena Democracia e segundo o presidente do SITEMAQ, Alexandre Delgado, com a “solidariedade dos maquinistas”, que se criou um “subsídio de nivelamento” para os mestres.
Durante 30 anos foi assim, até que Albano Rita, na altura presidente do Sindicato dos Fluviais e Costeiros – e que tinha captado boa parte dos mestres para o sindicato – após um longo período de greves, lhes conseguiu a atribuição de um “subsídio de chefia”. As ligações tinham passado a ser feitas em catamarãs, as tripulações foram reduzidas e os mestres passaram a “fazer leme”, o que não acontecia antes. Com o valor inicial a rondar os 43 euros, foi subindo (mesmo no período de crise em que houve congelamento de salários) até aos atuais 49,44 euros que os mestres querem ver substancialmente aumentado. Há quase dois anos começaram por propor mais de 200 euros e acabaram a aceitar 60, num acordo com o secretário de Estado adjunto e da Mobilidade, José Mendes. Mas que foi suspenso, levando às greves em curso.
Mestres e maquinistas têm o mesmo salário base, à volta de mil euros mas pode atingir os 1.700 ilíquidos com todos os subsídios associados. E sem contar com o trabalho extraordinário. A diferença está no subsídio de chefia.
Acordo de 31 de maio: armadilha ou ignorância?
Depois de várias greves, na tarde de dia 31 de maio, em que os representantes do Sindicato dos Fluviais negociaram sozinhos com o governo e administração, “conquistaram” um aumento de 60 euros no subsídio, o que o eleva para 109,44 euros, quando entrar em vigor. Todas as greves anunciadas foram desconvocadas mas os protestos dos outros trabalhadores e dos seus sindicatos representativos - nomeadamente da FECTRANS, de que o Sindicato dos Fluviais faz parte - surgiram de imediato: o que tinha sido proposto pela empresa na véspera incluía a negociação de um Acordo de Empresa, com revalorização salarial para todos os trabalhadores da Soflusa e não apenas para os mestres. Abriu-se a “caixa de Pandora” e o SITEMAQ anunciou intenção de avançar com paralisações nas outras categorias profissionais por altura do Santo António (posteriormente, adiadas para a semana seguinte).
No dia 17 de junho todos os sindicatos voltaram à sede da empresa no Cais do Sodré para negociar, mas confirmou-se o que alguns já sabiam: a atribuição do subsídio de chefia aos chefes em 2005 foi um “ato de gestão” da administração e nunca chegou a fazer parte da remuneração, contemplada no Acordo de Empresa. Como tal, não tem cobertura orçamental. Para que tal aconteça, o Acordo tem que ser negociado e só depois pode entrar em vigor e começar a ser pago. A ilegalidade foi confirmada pelo consultor da Transtejo/Soflusa, que admitiu a complexidade da negociação, conforme a ata da reunião a que a Renascença teve acesso. Documento que também revela que, com esse dado na mesa, os outros sindicatos defenderam a “suspensão do aumento atribuído até ser enquadrado no AE” e como acabou por ser suspenso, o SITEMAQ desconvocou a greve.
Uma questão se coloca: ninguém entre os protagonistas da negociação, nomeadamente da administração da Soflusa, sabia que o subsídio para os mestres não podia ser aumentado e entrar em vigor sem enquadramento legal? Ou foi apenas para travar o impacto que as greves parciais e às horas extraordinárias estavam a provocar na operação, levando à supressão de carreiras e ao descontentamento crescente dos utentes, que além das “explosões” locais e dos desabafos nas redes sociais (nomeadamente na página do Facebook – Contra os abusos da Soflusa aos passageiros) têm inundado a empresa de queixas?
E quando é que isto acaba?
Para já, a situação está num impasse, com uma greve total de três dias a decorrer até quarta-feira feira à meia noite. Para o dia seguinte (11 de julho) está marcada uma nova reunião com a administração. A “Comissão de Mestres” do Sindicato dos Fluviais insiste numa diferença salarial de 109 euros em relação aos maquinistas e a última vez que a Renascença conseguiu falar com um dos sindicalistas, tal foi bem frisado, “referindo que “se for necessário, ainda serão realizados mais dias de greve enquanto o aumento de 60 euros não for pago”. Os outros sindicatos e a Comissão de Trabalhadores exigem a valorização salarial de todas as carreiras da Soflusa (e não apenas dos tripulantes, em que também se incluem os marinheiros). E consideram que a proposta apresentada pela administração no dia 30 de maio é “um bom princípio de negociação: criação de mais uma diuturnidade para os trabalhadores que tenham a antiguidade necessária; garantir que na aplicação do novo Regulamento de Carreiras todos os trabalhadores da Soflusa e Transtejo terão uma progressão a partir de 2020, independentemente dos tempos previstos e a integração do prémio dos mestres na remuneração base.
Para os passageiros continuam os dias de “pesadelo” e “desespero”, como os classifica o presidente da Câmara do Barreiro, Frederico Rosa. Os serviços mínimos decretados pelo Tribunal Arbitral incluem apenas duas carreiras de ida e volta em cada um dos dias de greve: quem vai às 5 da manhã só pode regressar à 1h00 do dia seguinte. Segundo o Acórdão, visam “população com menores recursos económicos, nomeadamente dos sectores das limpezas e segurança e que tem de viajar em horários matutinos e noturnos, sem alternativas de transporte”. Pouco mais de 500 pessoas “contempladas” – é a lotação do barco – num universo de mais de 30 mil que atravessam o rio diariamente.
Por isso, a própria empresa – ao contrário do que tem acontecido noutras paralisações – providenciou autocarros a partir do Terminal do Barreiro para o do Seixal e aumentou o número destas carreiras fluviais para o Cais do Sodré. Por seu turno, a autarquia do Barreiro reforçou a carreira dos Transportes Coletivos que faz a ligação à estação ferroviária de Coina, onde os passageiros podem usar o comboio da Fertagus. Seja qual for a alternativa, exige muito mais tempo em deslocações e transporte em piores condições. Ainda assim, o impacto é menor porque é tempo de férias.