Uma quarentena em negativo. A pandemia dos refugiados
17-06-2020 - 06:50
 • Fabiana Faria*

A ilha de Lesbos, na Grécia, teve apenas quatro casos confirmados de Covid-19, mas a pandemia congelou as vidas de 40 mil pessoas, metade das quais, os migrantes, ficaram com um dia-a-dia ainda mais infernal do que já era.

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A minha quarentena foi um pouco peculiar, já que no cenário edénico de uma ilha grega também assolada por uma crise humanitária, a vida é cheia de contradições.

Enquanto 20.000 não podiam sair de casa, outros 20.000 não têm ao que chamar casa. Uns só podiam sair à rua para o estritamente necessário de modo a evitar filas, enquanto que outros sem filas não têm acesso ao estritamente necessário. Sustento, latrinas, chuveiros, médicos…tornam-se acessíveis apenas quando se está, no mínimo, três horas à espera da vez. Consequentemente, o distanciamento social tornou-se um conceito quase risório. Verdadeiramente, rir-nos-íamos se tudo isto não parecesse previsão de um cenário trágico… Cenário este que até agora (ainda?) não se realizou e, assim sendo, desde há umas semanas que a vida voltou à cidade de Mytilini.

O caos dos carros e das motas é de novo a banda sonora privilegiada. Os cafés e os restaurantes encontram-se repletos de clientes sequiosos por um bom ouzo. As lojas estão apinhadas de compradores cheios de vontade de gastar o dinheiro poupado durante a quarentena. As crianças permanecem de novo alongadas horas nas ruas a jogar futebol e a andar de bicicleta. E, por fim, as paragens de autocarro estão de novo cheias de refugiados e de requerentes de asilo à espera da boleia que os levará de volta ao maior campo de refugiados da Europa – Moria.

Para nós, pessoas com passaporte e cartões de identidade, as restrições que nos forçaram a ficar em casa cessaram em finais de maio. Porém, esta semana, todos aqueles que residem em campos como o de Moria foram informados que as suas restrições de movimento foram estendidas até ao dia 21 de junho. Anteriormente, seriam até ao dia 7 de junho. As perspetivas são de as restrições serem estendidas ad eternum.

O Governo grego diz tratar-se de uma medida preventiva para evitar a introdução e propagação da Covid-19 na ilha. Contudo, parece-me deveras curioso que seja esta a lógica, uma vez que até agora os únicos casos confirmados na ilha foram de quatro cidadãos gregos. Nem um único residente dos campos testou positivo para Covid-19.

O Governo diz querer proteger a sua população. Nós, trabalhadores humanitários, somos um pouco cínicos e parece-nos que finalmente está a pôr em prática toda esta vontade nacionalista de tornar os campos de refugiados em campos de detenção fechados. Infernos numa ilha grega paradisíaca de onde ninguém pode sair quando lhe apetece, seja para ir procurar um advogado para ajudar com o seu processo de asilo – apenas 2% têm acesso a apoio jurídico – ou para passear junto ao mar e esquecer durante uns segundos todo o drama de (sobre)viver em Moria.

Mas como se atrevem estes refugiados a querer sair do alojamento que a União Europeia tão enaltecidamente lhes proporcionou? Deviam era estar agradecidos por terem uma tenda de Verão – faça chuva ou faça sol – como casa; por poderem receber ovos crus e tomates e pepinos e pão com bolor como refeição numa fila que faz um curral parecer luxuoso; por terem uma sanita para cada 200 pessoas e um chuveiro para cada 300; por terem de mendigar à ONG por roupa e sapatos e champô e pensos higiénicos e ben-u-ron.... É preciso ter lata. Quer dizer, sobrevivem a guerras, perseguições políticas – sabias que há refugiados angolanos em Moria? – a contrabandistas turcos cuja moeda de troca favorita é violar esposas e filhas e acham que vão chegar à ‘Fortaleza Europa’ e serem recebidos de braços abertos? Já agora também querem essa coisa de Direitos Humanos e querem acesso a casa e a educação e a segurança e a viver mais do que sobreviver.

Este período da História está indelevelmente marcado pela Covid-19. Fomos forçados a pôr quotidianos em pausa e a refletir sobre quem somos e quem almejamos ser.

Enquanto desfruto do meu freddo espresso – pecado capital de gregos e de estrangeiros aculturados que enfiam gelo num café curto – numa varanda espraiada entre mar turquesa e tráfego incessante, desassossega-me que estejamos a fazer da pandemia e do “FicaEmCasa” os supremos personagens deste século e que nos estamos a esquecer daqueles que não tem sítio algum no mundo ao qual possam chamar casa.


*Fabiana Faria tem 23 anos e vive na ilha de Lesbos, onde trabalha para uma ONG que presta apoio jurídico a requerentes de asilo e refugiados com os seus processos.