O Visto de Fora recebeu esta semana a visita especial do correspondente da Renascença em Moscovo durante largos anos, ucraniano de origem, para uma leitura privilegiada da guerra da Ucrânia e da realidade política russa.
Face à radicalização do regime de Putin, Vitaly Gnatyuk sentiu-se na necessidade de abandonar Moscovo, onde viveu 45 anos, e mudar-se para Portugal.
Em conversa com os comentadores residentes do Visto de Fora, Olivier Bonamici e Begoña Iñiguez , o correspondente fala sobre a situação que se vive na Ucrânia e as perspetivas que se colocam face à guerra conduzida por Vladimir Putin.
Pessoalmente, como vê esta evolução que a própria NATO tem tido face aos acontecimentos na Ucrânia e como é que tudo isto é visto também do lado de lá, em Moscovo?
Com todo o mal que tem, [Vladimir Putin] é uma pessoa que tem na cabecinha tantas “baratinhas”, como se costuma dizer em russo, que é difícil prever, mas a ideia principal dele é acabar com a Ucrânia.
Foi isso que surgiu naquela cabeça já em 2004, desde a primeira ofensa que o povo ucraniano, durante a primeira revolta contra o candidato apoiado pela Rússia que venceu supostamente, mas que, diferentemente da Rússia, o povo ucraniano ficou escandalizado com o nível das falsificações e houve a primeira revolução.
No Ocidente, há muitos especialistas que consideram que a Rússia pode dar-se por satisfeita se ocupar o Donbass e depois iniciar negociações com vista a uma eventual paz. Acredita que a Rússia fica por aí ou quer ir mais longe?
Não, é preciso tirar algumas lições. Claro que a História não nos ensina nada, mas ela é precisa para tirarmos algumas lições. O facto de o senhor Hitler ter recebido uma boa parte da Checoslováquia, na altura, e toda a Áustria, não deu em nada. A guerra começou na mesma.
Mas a NATO está nesse papel, nesta altura ou, apesar de tudo, está a reagir de uma forma mais reforçada e unida do que aconteceu aos países europeus na altura?
Sim, as palavras são boas, bonitas, mas interessam as ações. Portanto, eu acho que esse nível de ajuda é muito, muito lento, em comparação com as necessidades.
Como ucraniano que esteve a morar na Rússia até há três semanas aproximadamente, como é que viveu isto que aconteceu no seu país? E o que o levou a sentir necessidade de sair da Rússia?
Saí porque a situação se tornava cada vez pior. A campanha anti-ucraniana começou quase há 20 anos. Logo depois de 2004, pouco a pouco e, nos últimos 10 anos, um pouco antes da Crimeia, ela acelerou de tal modo que muitas pessoas, a priori “inteligentes”, se tornaram vítimas desta campanha.
Quem costumava ver televisão russa, na sua maioria esmagadora, deixou de ter “miolos na cabeça”. Dou o exemplo de uma das minhas colegas com quem trabalhei há quatro anos durante a visita de um presidente lusófono. Ela parecia normal, no entanto, dá-se o início da guerra e ela escreveu coisas completamente incompreensíveis.
Creio que aquilo que se noticiava na Rússia, nos principais órgãos de comunicação internacionais e aqui, deste lado, não coincidia e ficávamos sem saber muito bem o que é que o cidadão médio russo estava a ouvir…
Aqueles que querem saber acabarão por encontrar todas as explicações e informação necessária, só que a televisão, (o maior meio é a televisão) a televisão já desde 2004 pertence toda ao regime de Putin.
Todos os principais canais e não principais também. Hoje em dia, é o controlo absoluto e a primeira coisa que ele fez depois de ter chegado ao poder foi acabar com a televisão minimamente independente.
Ou seja, hoje só há a versão oficial? Mas o que diz a maioria dos russos, acredita nessa versão oficial?
A maioria acredita. Dou o exemplo daquela senhora que acabou por dizer que tudo o que faz o Putin é muito certo e quando ele diz que quer vir para Portugal, ela questiona: “Não, como é possível ir para junto daquela gente ignorante e agressiva?” Não, os portugueses não são mais ignorantes do que os russos, do que os ucranianos. E são menos agressivos.
No Ocidente, existe hoje em dia o “politicamente correto” que diz que, neste momento, Putin é o mauzinho, mas o povo russo não o apoia. E o Instituto Levada, que é um dos raros Institutos mais “independentes” na Rússia, mostra que todos os estudos que fizeram indicam que a maioria do povo russo apoia Vladimir Putin. Você sentiu claramente na Rússia este apoio?
A meu ver, a maioria deve agora apoiar. De percentagem é inútil falar, porque num país como a Rússia é impossível fazer-se um inquérito normal. As pessoas têm medo de abrir a boca porque agora nem se pode chamar “guerra” à guerra.
“Operação especial…”
Sim… senão, é multas, prisões… chegou-se ao ponto de, uma semana antes da minha partida, uma menina apareceu no centro de Moscovo levantando os braços, supostamente tendo um slogan qualquer e a polícia prendeu-a. Foi escrito que levantou os braços e mostrou um slogan virtual com palavras antigovernamentais.
E como foi a sua saída da Rússia? Como conseguiu sair?
Há algumas companhias aéreas que ainda funcionam para a Turquia, Sérvia… no meu caso, fui de comboio até à fronteira com a Letónia, comboio e autocarro. Depois passei justificando a minha saída.
E como justificou?
Eu aqui participo numas conferências sobre “Metodologia de ensino de português no estrangeiro”.
É professor de português em Moscovo, faz traduções, para além de ser correspondente da Renascença, e também estas amizades e ligações com Portugal se revelaram bastante úteis. Considera ou não que esta guerra também é ideológica?
Sim, de certo modo. A ideologia de Putin praticamente não existe, ele tem algumas ideias. Ele é muito influenciado por este grupo de "chauvinistas" russos mais radicais, mas, no fim de contas, a única coisa que ele quer é partilhar o mundo com os norte-americanos.
Supostamente não gosta deles, mas as famílias antes viviam lá e muitas famílias dos oligarcas russos continuam a viver no Ocidente, principalmente nos Estados Unidos.
Voltar a 1945?
Sim, ou até mesmo já há duas semanas que ele deu a entender que é uma espécie de “Pedro, o Grande”.
Mas no Ocidente está também formada esta ideia de que Putin é a origem de todos os males e que se, de alguma forma, o atual Presidente russo desaparecesse, poder-se-ia encontrar uma solução para o conflito na Ucrânia. É só Putin que está em causa?
Não só Putin, mas se ele desaparecesse isso ia ajudar muito.
Relativamente à China, há o perigo de Putin se aproximar demais de Pequim. Isto pode ser possível? Como vê esta amizade?
Eu acho que, do ponto de vista da China, a Rússia é tão insignificante para os chineses que eles não precisam da Rússia, porque eles já possuem a maior parte da Sibéria.
Mas precisam que a Rússia não perca a face na Ucrânia porque, em função da questão de Taiwan, a China não quer que a Ucrânia venha a vencer...
Putin, que supostamente começou a guerra lutando contra o nazismo não sei onde na Ucrânia, no fim de contas está a bombardear as cidades que predominantemente estão habitadas pela população tipicamente russa, onde se fala russo e, agora, muita gente minha conhecida na Ucrânia que antigamente falava russo, passou a falar ucraniano. Até tiram os nomes de Leon Tolstoi… Agora ninguém quer andar pelas ruas com nomes russos.
Como é que vê o papel do papel do Presidente ucraniano? Ele terá sido excessivamente otimista ou até ingénuo no relacionamento com a Rússia no período que antecedeu a invasão?
Eu contribuí de certo modo para a vitória dele, pois desejei-lhe sorte pessoalmente, esperando no elevador. Foi em setembro 2018, estive com a minha irmã a mostrar-lhe a capital ucraniana e acabamos por viver no mesmo edifício onde está a sede da companhia de Zelensky. Nessa altura, ele era ator. E desejei-lhe boa sorte. Inicialmente, ele foi muito inexperiente, não criou uma equipa, mas progrediu, até ao ponto de ser agora um dos ucranianos mais.
Os ucranianos estão unidos em seu torno?
Bem ou mal, ele está a fazer muito mais do que era possível esperar-se dele.
Como é que imagina que esta guerra vai acabar?
Quando não se sabe. Eu queria que tudo voltasse no que respeita às fronteiras. Até 2014 e isso seria normal. Porque é preciso respeitar os acordos internacionais. Sem isso a humanidade não poderá viver. E espero que a Rússia também se transforme num país democrático, porque o povo russo também merece uma vida normal.