A ministra da Justiça reconhece o impacto de alguns processos judiciais na credibilidade do sistema democrático e avisa para os riscos de aproveitamento dessas situações por parte de "inimigos da democracia". Francisca Van Dunem admite a existência de uma “perceção geral de ineficiência” da população em relação ao setor judicial.
Sem nunca referir explicitamente alguns casos mais mediáticos, como a "Operação Marquês" - que levou representantes dos diversos quadrantes políticos a comentarem o estado do setor judicial e a ação do executivo -, a governante lembrou que "a política espelha a sociedade" para explicar as suspeitas de crimes associadas a personalidades políticas e empresariais em Portugal.
"Tivemos e teremos pessoas que exerceram relevantes cargos políticos sobre as quais recaíram suspeitas da prática de crimes. Algumas delas de crimes graves, de homicídios a apropriação indevida de bens públicos. Tivemos pessoas que ocuparam lugares do maior destaque no panorama da economia e da finança nacionais acusadas de crimes graves associados à atividade empresarial que desenvolviam", começou por referir na sua intervenção de abertura numa audição na Assembleia da República.
E continuou: "A democracia distingue-se dos regimes ditatoriais porque não oculta esses crimes. Porque não privilegia agentes em função da sua pertença a um partido, a uma ordem a uma congregação, ao "sistema". E isso faz toda a diferença. Porém, a credibilidade do sistema democrático sai beliscada e o sistema expõe-se aos seus inimigos se não for capaz de decidir essas causas num prazo razoável".
Francisca Van Dunem alertou, então, para a ameaça colocada pelos "inimigos da democracia", ao defender que estes "não hesitarão em esmagar a independência dos tribunais, em substituir a liberdade de pensamento e de ação". Simultaneamente, frisou que esses inimigos exploram "as desigualdades da resposta repressiva do Estado" para capitalizar uma suposta "evidência da necessidade de agentes e de ações providenciais" junto das pessoas.
Foi então que a ministra da Justiça realçou a recente aprovação da Estratégia Nacional Anticorrupção, assegurando que o Governo já iniciou a sua execução a nível legislativo e que "em breve" serão apresentadas no parlamento propostas de alterações ao Código Penal, ao Código de Processo Penal, à Lei da Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos e ao Código das Sociedades Comerciais.
"São propostas trabalhadas, debatidas, que visam no essencial aproximar a investigação à data dos factos; garantir de uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção; melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efetividade da punição", explicou Francisca Van Dunem, acrescentando: "Em suma, mudar a realidade e transformar as perceções".
"Perceção geral de ineficiência"
A ministra da Justiça admite a existência de uma “perceção geral de ineficiência” da população em relação ao setor judicial e considerou que muitos processos de grandes dimensões se prolongam por demasiado tempo.
“É inquestionável a persistência de uma perceção geral de ineficiência e de ausência de respostas globais adequadas, perceção essa claramente alimentada por processos mediatizados, normalmente processos penais de grandes dimensões e envolvendo figuras com notoriedade pública. Muitos desses processos têm, de facto, tempos de vida socialmente insuportáveis, numa era em que a verdade se tornou instantânea”, afirmou.
Na intervenção realizada em audição regimental na Assembleia da República, a governante vincou a “leitura normativa” da importância da celeridade na justiça e que “o processo equitativo (…) não deve ceder à tentação da urgência”, mas reconheceu que a lentidão pode ter consequências ao nível da eficácia e ser usada como uma arma por autoritarismos.
“Concordamos que a justiça não tem de se acomodar a expectativas individuais. Mas entendemos hoje, como antes, que é necessário aproximar o tempo da justiça de expectativas sociais razoáveis, sob pena de inadequação, de ineficácia e de instrumentalização por pulsões autoritárias”, observou.
A ministra da Justiça não descartou a realização de “mudanças” ou a necessidade de “alterar regimes”, sobretudo por força da transição digital, que considerou acarretar “um amplo conjunto de interrogações, de natureza jurídica, ética e social” sobre a sociedade e, em particular, sobre o setor judicial.