O trânsito da cidade está num ritmo estival, porque há férias escolares. Esta influência das crianças no tráfego automóvel é um dos muitos indicadores de uma característica da nossa sociedade: a fluidez do nosso tempo e do nosso dinheiro é determinado pelas crianças. O dia-a-dia da semana é determinado pelas actividades das (poucas) crianças; o fim-de-semana é arrumado de acordo com a agenda social das (poucas) crianças; são os adultos que andam a reboque das crianças, e não o inverso. Nesta atmosfera infanto-juvenil, é evidente que não sobra tempo e dinheiro para os mais velhos, os idosos, os avós, os nossos pais, sogros, tios-avós, que, com muita razão, sentem enorme solidão. Mais do que solidão, sentem que são um pneu furado sem lugar ou função.
Este descarte torna-se ainda mais evidente em períodos de férias. Nesta Páscoa, dizem os jornais, os portugueses vão bater recordes nas viagens turísticas para o exterior. Aquilo que devia ser uma festa da família alargada (Páscoa) passa a ser uma escapadinha hedonista de um indivíduo ou de um casalinho ou, no máximo, do casalinho com um ou dois filhos. Vão para o Brasil enquanto os velhos ficam cá; os avós e os tios-avós ficam na solidão do T2 do Cacém ou do casebre de Condeixa. Não por acaso, estes períodos de férias são marcados por um aumento do abandono de idosos nos hospitais. É um escândalo que dura há anos, um escândalo silenciado, um escândalo que é mais ou menos um tabu. Chamam-me “internamentos sociais”. É um eufemismo que devemos evitar em nome da clareza moral. Não são internamentos sociais, são pessoas abandonadas. E o facto de o número aumentar nas épocas das férias revela que este é um problema moral antes de ser um problema material. Existem muitos abandonos directos.
Mas claro que não podemos esquecer a dimensão principal: a pobreza. Creio que a maioria dos casos entra na categoria de abandono indireto gerado pela pobreza, pequenez e diversão das famílias. Imagine-se este cenário comum na nossa sociedade: uma mulher divorciada com um salário baixo ou médio, um ou dois filhos para criar, um ou dois velhos (pai ou mãe) para cuidar; tem um irmão na França ou na outra ponta de Portugal; no final do mês, ela muito simplesmente não tem dinheiro para um lar de idosos ou para uma dama de companhia para os pais. Há milhares de velhos em Portugal nestas condições: estão numa situação de abandono efectivo, porque os filhos estão na migração ou na emigração, porque os filhos não podem cuidar deles. É materialmente impossível cuidar deles, o que causa uma ansiedade terrível, uma ansiedade que está por reportar. Este é um assunto tabu. Como é óbvio, ninguém gosta de admitir que não tem dinheiro para cuidar do próprio pai. Se as pessoas não falam, os média não reportam. Se os média não reportam, os políticos não fazem nada. Desta forma, o inaceitável torna-se no novo normal e o assunto fica perdido na lixeira dos tabus.
Esta é a grande urgência moral e política do país aqui e agora. A sociedade portuguesa não está preparada para as famílias envelhecidas. Nas últimas décadas, ficámos mais modernos, mas não ficámos ricos o suficiente para compensar o salto da ruralidade para a modernidade. Já não há a tia, a prima, a filha, a vizinha para cuidar dos idosos. Nas sociedades ricas do norte, o dinheiro compensa a perda destes velhos laços comunitários. Nós não somos uma sociedade rica. Moral e materialmente, nós, portugueses de 2019, não sabemos o que fazer com os velhos a quem damos mais anos de vida através da medicina.