Padre sem medo em Reguengos. "Precisamos é de ter muito cuidado"
13-07-2020 - 12:31
 • Rosário Silva

Manuel José Marques teve que fazer dois testes à Covid-19 por ter tido contato com pessoas infetadas, mas não contraiu a doença. Sacerdote passa os dias a ajudar a comunidade como pode e pede que a Segurança Social seja o interlocutor que faz chegar ao Governo as dificuldades económicas da população e "os problemas de segurança das instituições que são enormes”.

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Manuel José Marques tem 60 anos. É padre há 36 anos e está há 22 no concelho de Reguengos de Monsaraz. A sua rotina mudou completamente durante a pandemia. A casa é, de há uns meses a esta parte, o seu “templo”, a partir do qual conforta espiritualmente os reguenguenses, seja pelo telefone, seja pelas redes sociais. A pintura é uma paixão, por todos conhecida, mas confessa que tem sobrado pouco tempo, nesta fase, para dar uso aos pinceis.

Ao país, pede que “não tenham medo, podem vir passar férias”, pois “não há nenhum problema de contágio em Reguengos”. Na mensagem que considera importante passar, sai um recado para a Segurança Social: “A pandemia veio dizer-nos que a Segurança Social tem de falar ao Governo das instituições, e não às instituições das determinações do Governo. Nós queremos apenas que a Segurança Social seja o interlocutor que faz chegar ao Governo, as dificuldades e os problemas, desde os problemas económicos, até aos problemas de segurança das instituições que são enormes”.

Como tem sido esta experiência, com a comunidade, em tempo de pandemia?

É uma experiência diferente, que nunca pensei fazer nestas condições. É diferente, mas é interessante. É claro que me deixa muitas preocupações face ao presente e ao futuro, e deixa-me muitas preocupações em relação às pessoas que estão em suas casas e não consigo contatar diariamente com todas. Isso era frequente nas diferentes celebrações. Agora não é assim, ainda que nos encontremos com as pessoas na rua, mas é diferente, em termos de contato pessoal, saber como as pessoas estão. Os dois meses em que estivemos confinados nas nossas casas foi muito isso. Agora já vamos saindo, mas ainda com muitas distâncias.

O surto em Reguengos provocou um retrocesso?

Houve um retrocesso, sim. Depois de começarmos em junho as celebrações, tínhamos já a igreja com os lugares todos ocupados. Temos três missas, em Reguengos, com 120 pessoas cada uma, que é a lotação da igreja, e agora com este surto diminuiu drasticamente. No primeiro fim de semana da notícia, acabamos por ter 20 pessoas numa missa, 50 noutra, 18 noutra, embora já comece de novo a aumentar, pois, a pouco e pouco, as pessoas vão perdendo o medo.

Eu vou-lhes dizendo que não precisamos de ter medo, precisamos é de ter muito cuidado. O lugar onde estamos mais seguros até é na igreja, e nem sequer é por causa da proteção divina, é porque estamos à distância, estamos bem-comportados, estamos bem apetrechados com máscaras e com álcool e, portanto, tudo se passa com muita serenidade na celebração, onde todos se sentem seguros. Já nas aldeias, as pessoas continuam a marcar presença e não houve quebras.

Na sequência do surto, faleceram muitas pessoas. Como tem sido lidar com essas famílias? Como sente as pessoas, de uma forma geral?

Há aqui diversos níveis. Por um lado, é uma preocupação geral. Como vemos que há mortos, começamos a ter mais medo, não é? E, portanto, há um certo pânico, pelo menos houve um receio grande por parte da população logo na primeira semana. Fui falando com as pessoas, através do Facebook, vou deixando as minhas mensagens positivas, com esperança no futuro e via na resposta das pessoas, uma certa tristeza, uma certa lamentação, muito receio. A esse nível há um trabalho que temos vindo a fazer, e acho que está a ser conseguido na medida em que vão também aparecendo notícias mais positivas.

Depois, há a família direta das pessoas que estão na instituição. De uma forma geral estão preocupadas, querem saber dos idosos, são muitos idosos infetados, são também funcionários e há esta preocupação: quando a gente não vê, a gente não sabe. Quanto aos familiares das pessoas que faleceram, nós não podemos falar muito tempo com eles, os funerais são feitos em pouco tempo, mas um tempo útil, e aí eu sinto que o que fazemos é feito com paz, com dignidade. Sinto um misto, por um lado, a tristeza das pessoas por uma despedida rápida, de caixão fechado e, por outro lado, sinto nelas uma serenidade pelo que está a ser feito, e que é o possível de fazer-se agora. Depois, o luto que é feito em casa, a avaliar pelo que vejo das pessoas que vão à missa, não sinto que estejam revoltadas ou então não me transmitem isso. Talvez seja um sentimento de proteção que todos desencadeamos, um processo de cura.

Considera que a pandemia aproximou as pessoas da Igreja?

Eu não sei, porque a Igreja hoje tem menos pessoas, em termos numéricos. Acho que, pelos contatos que tenho, que elas se sentem aproximadas de Deus, e sentem Deus próximo delas. No princípio, ia distribuir a comunhão às pessoas que habitualmente vão à igreja, e como não havia eucaristia, levava a comunhão às suas casas e elas ficavam muito emocionadas, como que a pensar: “é Jesus que vem à minha porta”. Tive pessoas a telefonarem-me e a chorar de emoção. Agora, estou eu a telefonar às pessoas que estão doentes, confinadas em casa, de quarentena. Ainda não consegui falar com todas, algumas com sintomas mais pesados, mas sinto-as emocionalmente muito bem. Haverá pessoas com outros sentimentos, naturalmente, mas estou encantado com a capacidade que têm de viver, de alguma forma, em sofrimento. Sinto uma proximidade com Deus, sim.


E essa relação com o divino é uma necessidade ou uma espécie de paliativo, nalguns casos?

A pandemia trouxe-nos uma evidência. A ciência não responde a tudo, não é tão imediata como queríamos, nem tão exata como pensamos. E, revelou outra coisa: nós somos humanos e quando nos damos conta disso, precisamos do divino. Não é paliativo. É mesmo, eu preciso de alguém que me dê a mão e me levante de verdade, do meu chão. Nós andamos aí a fingir que somos ricos, a fingir que temos tudo e não precisamos de nada, temos muitos amigos, mas até nem precisamos deles. Tudo isto a partir da nossa sabedoria, da nossa autossuficiência, e agora demo-nos conta que precisamos uns dos outros, e que precisamos que alguém nos levante por dentro. E só Deus pode fazer isso, não é?

Como é agora a sua rotina?

As pessoas pensam que trabalhamos menos agora do que antes, mas não é assim. Eu trabalho mais agora, sinceramente. Os dias passam com uma velocidade incrível. Levanto-me todos os dias às 5h45. Às 6h00 horas saio e vou fazer uma caminhada, regressando às 7h00. Preparo-me, rezo, ponho a Lectio Divina, se não o fiz na véspera, no meu Facebook, faço a preparação da minha homilia diária, despacho alguns mails e vou celebrar missa. Tomo o cafezinho, depois da missa, com quem aparece, e regresso a casa para trabalhar.

Agora vou menos aos lares, tenho dois, mas não posso colocar em risco os utentes, por isso, trato as questões, sempre que possível, por telefone. Aliás, passo horas a fazer telefonemas às pessoas, aos que estão doentes agora, aos outros cristãos que não apareceram e eu sei podem estar em baixo, também dou a Santa Unção a algumas pessoas que pedem, levo a comunhão a outros que não podem ir à missa, tenho um jornal, “A Palavra”, para preparar, preparo as aulas que vou dar no próximo semestre, e é assim que gasto o meu tempo. Vou à rua para tomar café, para dizer às pessoas que estou vivo (risos), e sempre mexo com a economia da terra.

E, tem tido tempo para a pintar?

Incrível, desde março que não faço quase nada. Pintei dois quadros em quatro meses. Também ainda não li um livro, não consigo, não tenho tempo. Antes dizia que não tinha tempo, mas afinal conseguia ler, pintava imenso e agora não. Talvez também não tenha vontade, não sei.

Teve que fazer dois testes por ter tido contato com pessoas infetadas. Sentiu-se ameaçado?

Não, não senti, por duas razões. A primeira vez, estava a preparar a estado de emergência, os nossos planos de ação nos lares e, nessa altura, ainda brincava com o uso da máscara e até me diziam que não estava a levar isto a sério. É lógico que estava a levar a sério, mas não daquela maneira. Na mesma semana, de segunda a sexta, as coisas mudaram radicalmente, quando a Igreja decidiu cancelar as celebrações. Foi tudo muito rápido. E nessa sexta-feira à noite, ligou-me uma das minhas técnicas para me dizer que o contabilista estava infetado e que ela tinha estado com ele, e eu com ela. Fiz o teste, deu negativo, mas não me senti ameaçado, pois sentia-me bem e a minha preocupação nem era comigo, mas sim com os meus idosos.

Da segunda vez, foi diferente. Não foi por causa do surto, mas por uma coincidência. Eu, que nunca tenho febre, nessa noite tive, embora de manhã tivesse baixado. Liguei para a Linha de Saúde 24, que é o que todos devemos fazer, e fui aconselhado a fazer o teste. Felizmente, voltou negativo. Pessoalmente, não senti qualquer receio, mas houve um momento, já durante o surto que tive receio que isto se espalhasse pela comunidade. Penso que, agora, as coisas estão controladas.

Na sua perspetiva, que mensagem é importante passar, neste momento, para a comunidade?

Há muitas coisas que gostava de dizer e que me parecem importantes. Em primeiro lugar, a pandemia veio-nos dizer que a Segurança Social tem de falar ao Governo das instituições, e não às instituições das determinações do Governo. Nós somos parceiros, não somos cumpridores de normas. Queremos cumprir as normas, queremos ter as coisas todas regularizadas, mas queremos que o Governo saiba quais são as dificuldades das instituições. Não é quando chega uma situação destas, por exemplo, dizer que são as funcionárias que levam o vírus para dentro dos lares, ora isso sabemos nós. As funcionárias têm maridos, têm filhos, mas estes não têm obrigação de cumprir as nossas normas. Não é a direção, nós sabemos que as direções trabalham gratuitamente. Depois de um dia de trabalho, ainda cuidam da instituição. Nós queremos apenas que a Segurança Social seja o interlocutor que faz chegar ao Governo as dificuldades e os problemas, desde os problemas económicos, até aos problemas de segurança das instituições que são enormes.

Em segundo lugar, queria deixar uma palavra de solidariedade para com a Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão que, independentemente de todas as coisas que possam ser ditas, a verdade é que merece o respeito de toda a gente, pois é uma instituição com valor e com um trabalho feito, durante muitos anos, também ele com muito sacrifício. Merece o nosso apoio e a nossa consideração.

Por último, quero dizer aos reguenguenses que vale a pena termos um sentimento positivo, de alegria e de esperança, pois se as perdermos ficamos caídos no chão. Não! Nós vamo-nos levantar. Temos capacidade e coragem para tal. Por favor, vamos sair de casa, vamos beber um café, vamos até à porta da vizinha saber como ela está, vamos telefonar a quem precisa, isso é importante. Aproveito para dizer a todo o país que nós estamos bem e que as notícias da televisão, são o que são. Há pessoas que não querem cá vir fornecer as lojas ou que levemos os nossos produtos para outros concelhos. A esses, eu digo: não tenham medo, nós estamos bem, apesar de termos algumas pessoas doentes, mas essas estão confinadas e vigiadas. Podem vir passar férias a Reguengos que não há nenhum problema de contágio, neste momento, portanto, venham tranquilos. Reguengos continua a ser uma terra de sol, de gente boa e acolhedora, e com esta vontade de vencer, vamos conseguir. Reguengos é uma terra de gente feliz.