Epidemiologista, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Manuel Carmo Gomes é um dos membros da recém-conhecida Comissão Técnica de Vacinação Contra a Covid. O grupo já se reuniu, mas é a partir de agora que se vão intensificar os encontros que levarão à estratégia portuguesa.
Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do "Público", que pode ouvir na integra esta quinta-feira às 23h, enumera algumas das muitas variáveis que este grupo de peritos terá de avaliar. E mostra-se confiante quer na adesão dos portugueses à vacina quer em relação à chegada das primeiras doses no início do próximo ano.
Foi constituída e finalmente conhecida a comissão técnica de vacinação contra a Covid-19, que vai desenhar a estratégia de distribuição de uma vacina em Portugal. Não vem tarde?
Se bem que possa ter sido de alguma forma oficializada agora, já estamos a funcionar há várias semanas. Vamos começar agora a ter reuniões com mais frequência, porque os fabricantes também não davam noticias até novembro.
Em que fase estamos?
Estamos a ouvir a opinião de todos, a trocar impressões e a ver os prós e contras de várias estratégias diferentes. Há muitos fatores a ter em atenção.
Em primeiro lugar temos de ter em atenção o que são os principais fatores de risco para hospitalização com esta doença. Estou a falar das situações de doença moderada ou grave. Uns têm meramente a ver com a idade das pessoas, outros com cormobilidades. Mas depois há outros fatores que também têm de ser considerados, como por exemplo, a ocupação das pessoas, se estão em contacto direto com os infetados e têm maior probabilidade de serem infetadas, se estão a lidar com pessoas de alto risco para a doença, etc.
Isso deixa algumas pistas para o que poderão ser os grupos prioritários na vacinação contra a Covid-19.
Não vamos destoar muito do que vai ser adotado na Europa e na América do Norte.
Na sua opinião qual deveriam ser os grupos prioritários?
Não vou dizer quais devem ser os grupos prioritários, porque isso são decisões que a comissão vai tomar e temos conversado sobre os prós e contras de várias opções.
Por exemplo, faria sentido vacinar as crianças? Uma vez que têm consequências mais moderadas da doença.
Na minha opinião as crianças não são claramente um grupo prioritário para esta doença. Sei que é um pouco estranho para quem está habituado a trabalhar com vírus respiratórios, em que as crianças são as mais suceptíveis à infeção, as que mais transmitem e o principal foco de transmissão. Mas obviamente não isso que se passa com esta doença.
E os idosos?
Os idosos sim. Aí temos um grupo importante, basta olhar para os hospitais e ver quem são os doentes e o seu estado de gravidade. Agora, em relação às idades mais avançadas, temos aqui alguns dilemas difíceis.
Necessitaríamos de ter informação por parte das companhias relativamente à efetividade destas vacinas precisamente nesses grupos que são de maior risco. E isso não acontece necessariamente, porque quando há ensaios clínicos, seja vacinas sejam outros medicamentos, normalmente não envolvem aquilo que consideramos pessoas de risco. Não envolvem os mais idosos, as grávidas, crianças muito jovens, não envolvem pessoas com doenças crónicas.
Isto é o habitual, mas devo acrescentar que pelo menos algumas companhias [farmacêuticas] têm ensaios onde puseram algumas destas pessoas. Vai ser possível ter alguma informação acerca da resposta à vacina por parte destes grupos.
Como será feita a distribuição? O atual modelo da vacinação da gripe poderá servir de base? Poderemos ter de recorrer aos militares para ser mais rápido?
Tudo isso são possibilidades em cima da mesa. Agora uma coisa é certa, isto não é uma campanha de vacinação como a que estamos habituados no Programa Nacional de Vacinação. Aqui estamos a falar de um número muito mais elevado de pessoas. Por outro lado, temos também de ver qual o calendário de chegada das vacinas a Portugal, que é uma coisa que ainda não está completamente definida.
"Não vão existir soluções perfeitas. Mas é uma boa notícia sabermos que poderemos contar com vacinas o mais tardar em 2021"
Depois ainda há outra complicação: em princípio vão existir várias vacinas e uma das nossas missões é precisamente comparar as vacinas entre si no que diz respeito à eficácia precisamente nos grupos de risco ou nos grupos que consideraremos prioritários. Permita-me dizer desde já que não vão existir soluções perfeitas. Mas é uma boa notícia sabermos que poderemos contar com vacinas o mais tardar em 2021.
Uma das questões que traz um novo desafio são as temperaturas baixas que algumas destas vacinas necessitarão para se manterem em armazenamento.
Temos pessoas com muita experiência em rede de frio por causa do Programa Nacional de Vacinação. Mas temos aqui diferentes níveis de dificuldade. A vacina da Pfizer, que é a que está mais avançada tem uns requisitos de ultra-frio que as outras não têm. Já a vacina da Moderna tem requisitos de menos 20º para armazenamento, embora possa estar a temperaturas de frigoríficos normais por alguns dias para ser utilizada. E depois temos a vacina da Astrazeneca, que também está muito avançada, que requer apenas entre 2 a 8 graus, portanto frigorífico normal pode ter essa vacina.
Ainda vai ser necessário acompanhar as pessoas que forem vacinadas. Como vai ser feita essa monitorização?
Isso é extremamente importante. As pessoas ouvem falar na fase 3 dos ensaios, que neste caso levaram anormalmente pouco tempo. É durante essa fase que normalmente nos apercebemos dos efeitos adversos.
No caso destas vacinas foram reunidos um conjuntos de garantias de que os efeitos adversos não serão significativos ou, se fossem, seriamos capazes de os detectar. Existe uma coisa chamada farmacovigilância, que o nosso Infarmed tem muita experiência e certamente vai acompanhar estas pessoas depois de serem vacinadas.
Na sua opinião faria sentido tornar esta vacinação obrigatória?
Aqui posso exprimir apenas a minha opinião e a minha opinião é não. O nosso Programa Nacional de Vacinação não é obrigatório, é fortemente recomendado. Vejo com muita dificuldade introduzir obrigatoriedade. Além disso, em Portugal felizmente existe uma boa adesão da população à vacinação. Estou muito confiante que os portugueses vão aderir à vacinação seguindo a ordem de prioridades que será estabelecida para esta vacina.
Acredita que vamos ter uma vacina no início do próximo ano?
Estou convencido que vamos ter na primeira metade do próximo ano, o mais tardar, os primeiros lotes de vacinas a chegar. Não chegarão para toda a população que quereremos vacinar, mas estou convencido também que na segunda metade do próximo ano teremos aquilo a que chamaria a vacina ao dispor na farmácia para quem quiser tomar.
Ouvi as declarações da senhora Ursula Von der Leyen, que deu garantias que todos os países da União Europeia receberiam aproximadamente na mesma altura o seu quinhão de vacinas dos diferentes fabricantes. Isto dá uma certa garantia que Portugal não vai ficar para tas comparativamente ao outros parceiros na União Europeia. Certamente que no primeiro trimestre do ano que vem já teremos as doses e certamente que ao longo do ano que vem teremos um número crescente de doses de vacinas para administrar à população portuguesa.