Mergulhado na terceira vaga da pandemia, o mundo deste início de
2021 vai contando números e sustendo a respiração. Os recursos hospitalares são
finitos, as economias têm limites para acomodar mais crise e os decisores
políticos parecem estar a esgotar a energia e o discernimento. Dizem os
ambientalistas que as guerras do século XXI serão travadas por causa de
recursos naturais, como a água. Para já, aquilo a que o mundo assiste é a uma
guerra em torno das vacinas - porque é delas que se espera o milagre da
contenção e da redução do impacto da Covid.
Como por tantos outros motivos e em tantos outros momentos, a competição por recursos escassos traz à tona o pior. A UE está em pé de guerra com as farmacêuticas, cujas promessas iniciais garantiam a imunização de toda, ou quase toda, a população europeia dos 27 estados-membros em tempo razoável. Só com muita pressão se conseguirá que a AstraZeneca cumpra a entrega de 100 milhões de doses até março, já pagas pela Comissão Europeia, para somar às da Pfizer. A UE está a perder no ritmo de vacinação para a Grã-Bretanha, para os EUA e até para Israel. E não está longe, porventura, o dia em que a rivalidade dos compradores chegará ao interior da União, com os mais pobres, como Portugal - os que, sozinhos não conseguem comprar - de “chapéu na mão” à espera. Enquanto durar a pandemia, as vacinas anti Covid são um novo “ouro negro”. Que o digam a Rússia e a China, que já vendem as suas para a América Latina (a África parece esquecida), a troco de outros negócios com os governos locais, numa nova globalização da necessidade que se paga com reforçadas presenças comerciais e políticas dos grandes em casa dos pequenos.
Por falar em pequenos, em Portugal não há propriamente uma guerra de vacinas, mas a vacinação, iniciada com demasiada saloiice propagandística pelo governo há um mês, é agora ocasião para vergonha. Com as c. 330 mil doses que já cá chegaram (é o que se arranja), vacinaram-se umas 250 mil pessoas. A este ritmo, serão necessários dois anos para a “imunidade de grupo” (c. 6 milhões de vacinados). Por contraste, os EUA preveem vacinar a sua população, de c. 330 milhões, até setembro.
Pior do que isto é aquilo que se faz com o pouco que se tem. O plano de vacinação nacional é um emaranhado voluntarista de avanços e recuos, com problemas imprevistos ou opções inacreditáveis.
Vacinados os grupos prioritários, como vão um SNS esgotado e um Estado falho de organização chegar a todos os portugueses, quando a maioria nem médico de família tem? E os prioritários, afinal quem são? Os profissionais de saúde e/ou dos lares – mas todos, ou só os do setor público? E os idosos, pertencem à segunda fase ou já a esta primeira, que não se entende quando acaba? Para o fim, deixo as vergonhas maiores, cujas notícias nos têm chegado: a Segurança Social de Setúbal que vacina a sua diretora e funcionários, a delegação norte do INEM que vacinou o proprietário e os trabalhadores de uma pastelaria (!), presidentes de Câmaras, de assembleia municipal ou vereadores que ordenam usos peculiares das “sobras”, e até o Parlamento, onde correm listas dos “indispensáveis” a vacinar que, pelos vistos, são mais indispensáveis do que quem realmente arrisca a vida e cuida de outros. Deve ser por tudo isto que o reeleito presidente Marcelo me pareceu invulgarmente cansado e pessimista na sua última alocução sanitária, ou que a esforçada ministra da Saúde considera “criminosos” todos os que se inquietam com o que corre mal. E vale a pena lembrar o óbvio – que nem todos os que se inquietam com o que corre mal são eleitores de André Ventura…