Há empresas em Portugal que usam programas informáticos para controlar todos os passos dos seus trabalhadores em teletrabalho no domicílio, denunciou a professora da Universidade do Minho, Teresa Coelho Moreira, num debate organizado na terça-feira pela Associação Práxis – Reflexão e Debate sobre Trabalho e Sindicalismo sobre “Teletrabalho e Direitos: a Lei e a Negociação”.
Com a pandemia, muitos trabalhadores viram-se confrontados com a obrigação de trabalhar em casa, sem formação adequada, com reuniões virtuais a toda a hora e recorrendo, na maior parte dos casos, aos seus próprios computadores onde foram instalados programas para que pudessem continuar a trabalhar.
O problema, na opinião da docente especializada em Privacidade e Proteção de Dados Pessoais, é que alguns desses programas têm uma capacidade de controlo quase ilimitada.
“Controlam tudo, mas mesmo tudo: os dados pessoais dos trabalhadores ou as fotografias que têm no computador, que são externos à prestação de trabalho; controlam todas teclas que o trabalhador usa e a velocidade (tiram ‘screen shots’ sucessivos do écran)”, relata Teresa Coelho Moreira.
“Sabem o que está a fazer em cada momento, quem lá está do agregado familiar, incluindo menores, uma situação muito frequente nesta fase da pandemia. Mais grave ainda: frequentemente é feito de forma oculta, o que é completamente proibido”, sublinha a docente.
Para Teresa Coelho Moreira, o teletrabalho deveria ter lugar num local próprio em que o controlo se limitasse ao estritamente necessário, que tem a ver com a prestação, o que não está a acontecer neste momento.
Recorre aos artigos 20º e 21º do Código de Trabalho, sobre os Direitos de Personalidade, para lembrar que não é permitido o controlo do desempenho profissional do trabalhador. “Embora não tenham sido feitos a pensar no teletrabalho, aplica-se a proibição da videovigilância, geolocalização e radiofrequência, no domicílio”.
O que não quer dizer que não seja possível um controlo por parte das entidades empregadoras, uma vez que se está perante um contrato de trabalho subordinado. “Mas deve ser feito de forma minimalista, não intrusiva, sem pôr em causa a privacidade das pessoas”, defende.
Teletrabalho, sindicatos e negociação coletiva
Entre os juristas participantes no debate as opiniões dividiram-se sobre a necessidade de alterar ou não as normas contantes do Código de Trabalho sobre o teletrabalho, antes considerado uma forma “atípica, residual e marginal”.
Para João Leal Amado, professor de Direito na Universidade de Coimbra, a experiência da pandemia justifica algumas modificações no regime de teletrabalho, tendo em conta não apenas a privacidade, mas também o isolamento físico leva à individualização das relações de trabalho e a necessidade de garantir a separação entre o tempo de trabalho e a vida pessoal.
Para o universitário, está fora de questão a possibilidade de qualquer teletrabalhador estar isento de horário de trabalho. “Tem que haver a possibilidade de desligar” e, por isso, defende a eliminação do artigo 218º do Código do Trabalho, que estabelece essa possibilidade.
O tempo de trabalho foi um dos pontos referido por todos os participantes, nomeadamente o facto de muita gente dizer que durante a pandemia ainda trabalhou mais.
Para Teresa Coelho Gouveia, a situação poderia ser resolvida com o “log in e log off”. Desta forma, a entidade empregadora saberia quando a pessoa começava e acabava o trabalho. Mas também houve quem defendesse o dever de a empresa desligar a partir de uma determinada hora.
Para José João Abrantes, professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, esta realidade que veio para ficar ainda vai acentuar mais a individualização das relações de trabalho e a desvalorização do papel dos sindicatos.
Esse é, por isso, um desafio para as organizações sindicais – que têm que se preparar devidamente - e para a negociação coletiva, defende Manuela Santos Silva, jurista sindical. Considera que, para já, não é necessário alterar o Código de Trabalho. “Os princípios são bons, o grande problema vai ser a prova em tribunal porque o trabalhador está sozinho em casa, sem outras testemunhas”.
A advogada considera, por isso, que é muito importante que as comissões de higiene e segurança possam fazer visitas à casa do teletrabalhador para confirmar que a sua privacidade está salvaguardada, que tem condições ergonómicas de trabalho, que tem um horário definido que é cumprido e que está em igualdade de condições e direitos com os outros trabalhadores que exercem funções nas instalações da empresa, nomeadamente o direito ao subsídio de refeição.
Além disso, têm que ser definidas as compensações pelo uso de um espaço doméstico, de computador e outros instrumentos próprios, consumo de água e energia, seguro de acidentes de trabalho. Situações que, claramente, durante a pandemia, não foram tidas em conta. Os custos ficaram, em grande parte dos casos, por conta dos trabalhadores.
Para Manuela Santos Silva é importante que todas as condições sejam definidas num documento escrito. Tão importante como a necessidade dos trabalhadores não se desligarem da empresa, estabelecerem relações com as chefias, mas também com os colegas e especialmente, com os que têm funções sindicais.
No debate organizado pela Práxis participaram também quatro sindicalistas: Áurea Bastos, da comissão de trabalhadores da REN; Daniel Bernardino, coordenador da comissão de trabalhadores da Faurecia e das CT´s do Parque Industrial da Autoeuropa; Gonçalo Leite g, do SNESUP – Sindicato Nacional do Ensino Superior e Luís Filipe Simões, do Sindicato dos Jornalistas.
A opinião geral é que é preciso definir regras mais rigorosos para o Teletrabalho, que ganhou um peso sem retorno durante a pandemia. Afinal, não é um mecanismo em que seja tão fácil conciliar a vida profissional e familiar, como muitos pensavam antes.