“O PCP não trabalha para campanhas eleitorais"
03-12-2016 - 23:15
 • Elsa Araújo Rodrigues

Retratos de um partido onde a “luta” nunca termina, o líder não é um chefe e as máximas de Lenine ainda são regra.

O PCP é um partido que se diferencia de todos os outros do espectro político nacional porque tem “um projecto a longo, muito longo prazo”. A descrição é de Ana Gusmão, assistente de realização, 31 anos, funcionária do partido desde 2011. Ana, um dos nomes novos do Comité Central eleito no congresso deste fim-de-semana, começou a militância cedo, “há cerca de dez anos”. Mas a ligação ao partido começou bem mais cedo, numa família com “várias gerações de militantes” e inclui a passagem pelos Pioneiros de Portugal, a estrutura do PCP para a infância.

A militância exige tempo e dedicação, à medida dos objectivos a ambiciosos do partido, explica Ana Gusmão: “Inscrevemo-nos e militamos neste partido com um objectivo, que é o objectivo de transformar a sociedade. E transformá-la, de facto, profundamente. Não é uma transformação porque rodou o partido que está no Governo, ou porque ganhou uma câmara municipal. É uma transformação que pretende terminar com a exploração do homem pelo homem.”

Essa transformação, diz a nova dirigente comunista, “não se faz a concorrer a eleições de quatro em quatro anos ou com alguém que queira fazer carreira na política ou que procure benefícios pessoais ou com alguém que salte e esteja numa espécie de porta giratória entre o Governo e empresas públicas”. Os comunistas fazem questão de como que estar limpos do exercício do poder e isso tem sido manifesto ao longo deste XX Congresso, que decorre em Almada e que tem lugar num momento histórico da vida do PCP em que é um dos partidos da maioria parlamentar que sustenta o Governo.

Os dirigentes comunistas vão subindo ao palco para dizer que o PCP não é suporte do Governo, que não se diluiu, que mantém a sua autonomia e independência. E vão dizendo que o PS tem limitações, que não é capaz de fazer a política necessária para a mudança que os comunistas querem. “Os militantes do partido que são trabalhadores, reformados, jovens estão interessados numa mudança que é muito profunda”, diz Ana Gusmão, filha do poeta Manuel Gusmão, que sai do Comité Central neste Congresso, e irmã do dirigente bloquista José Gusmão.

“Firmeza estratégica e flexibilidade táctica”

Os anos passam, o Partido Comunista Português funciona desde os anos 20 em Portugal, mas a ideia de que é necessária uma “mudança profunda da sociedade” permanece. No entanto, o seu poder de atracção que exerce sobre os jovens parece ser cada vez menor.

Uma das orientações prioritárias que faz parte das teses deste congresso – o documento de mais de oito de dezenas de páginas que explica o “projecto de resolução política” – apela à necessidade de “renovar e rejuvenescer o quadro de funcionários do partido”.

Apesar dos mais de cinco mil militantes angariados nos últimos quatro anos (5300, segundo os dados disponíveis nas teses), o “recrutamento de novos militantes” é um problema.

“É um problema, mas é uma circunstância. Um partido é sempre o reflexo da realidade onde intervêm. E a sociedade portuguesa está a envelhecer. O partido é um espelho dessa realidade. Mas é preciso garantir que há essa renovação de forma natural. Ou seja, não é uma coisa do género: precisamos de ter 'X' tipos com menos de 30 anos”, reconhece Ana Gusmão.

Faltam jovens no PCP, uma realidade que não é fácil contornar. Uma “falta” associada ao que os dirigentes dizem ser uma lacuna: o desconhecimento e “preconceito” que ainda existe acerca do que é e como funciona o partido.

Explicar o objectivo último do comunismo, “a construção do socialismo” não é fácil. Até porque muitas vezes, o ideal político e doutrinário esbarra na realidade, um problema que se resolve “por etapas”, com recurso à estratégia delineada pelo próprio Lenine.

“O PCP tem um objectivo, que é construir o socialismo. Para chegar lá, há etapas, há momentos. E, em cada momento, a forma como a gente desenvolve a nossa actividade, tem que ver com as condições concretas. Isto é um princípio que já Lenine o colocava, que é ‘firmeza estratégica e flexibilidade táctica'. As pessoas têm que ser convencidas, e em cada momento, face às condições concretas, nós temos que encontrar as formas de convencer as pessoas. E convencê-las de que as coisas resolvem-se e não é à espera que alguém faça por eles aquilo que lhes compete. Têm que ir à luta”.

Montar a “barraquinha da revolução”

Todos os militantes que falaram à Renascença (alguns indicados pelo partido, outros não) repetem a palavra luta. “É preciso continuar a luta”, “o importante é a luta”, “a luta não acabou”. Frases que lembram a dupla de humoristas “Homens da Luta” (que retrata de forma caricatural dos militantes do PCP, saídos dos anos 70). São ditas muito a sério pelos militantes, que não obstante, reconhecem que é pela “luta e pela revolução” que o partido é conhecido.

“Tenho uns amigos, que quando eu tento explicar [o que faz, enquanto funcionária do partido]… É difícil perceber, para quem conhece sobretudo os outros partidos, não é? Porque nós temos uma forma de organização muito diferente. Nós não trabalhamos para campanhas eleitorais, nós trabalhamos para uma coisa muito mais profunda. Precisamos de um corpo de funcionários com outras características, que tem outro tipo de tarefas. E eu, quando tento explicar aos amigos… Eles dizem muitas vezes: tu chegas lá e montas a barraquinha da revolução? [Risos] E depois ao fim do dia, desmontas? É assim que eles resumem…”, conta Ana Gusmão, justificando o facto de o PCP ter mais funcionários que os outros partidos. E são também os funcionários que dominam o Comité Central, órgão máximo do partido.

O “partido da revolução” ou da oposição é uma forma de resumir o partido comunista que cada vez menos se aplica à realidade. Em especial, depois das últimas eleições de 4 de Outubro de 2015, em que teve um papel decisivo na criação de uma solução governativa de esquerda, com socialistas e bloquistas e ficou conhecida pela expressão “geringonça”. Os comunistas reclamam para si a iniciativa política que acabou por viabilizar o Governo do PS.

“Se não fosse o PCP esta solução não existia. O António Costa quando chegou à televisão [depois das eleições], a primeira coisa que fez foi dar os parabéns a Passos Coelho. E o Jerónimo de Sousa quando interveio, aquilo que disse foi 'o PS só não é Governo, só se não quiser'. Se alguém tomou a iniciativa... Se não fosse o PCP avançar com esta proposta, não teria havido a viabilização deste Governo”, frisa Rego Mendes. Reformado, ex-funcionário da CP, é militante desde o 25 de Abril. Já foi vereador comunista na Câmara Municipal de Lisboa e nesta vigésima edição do congresso é delegado pelo sector dos transportes.

O PCP “permitiu” o Governo minoritário do PS, uma “nova situação” que, não implicou, no entanto, a uma mudança de posição dos comunistas. “Nós consideramos que há uma nova situação, porque há uma alteração da correlação de forças na Assembleia da República. O que não há é outra coisa, que tem vindo a ser propalada por todos os meios e mais alguns, uma alteração da posição do partido. O partido tem uma posição e um compromisso, com os trabalhadores e o povo português”, esclarece Ana Gusmão.

Ivo Silva, de Paredes e delegado ao congresso, recorda os objectivos a longo prazo dos comunistas, que vão muito para além da actualidade: “A situação política, este quadro político actual, significa a inversão do rumo que temos seguido até aqui. Há uma luta que é necessário continuar e travar e que vai para além do Parlamento. Vai para além desta posição conjunta.”

Embora não sejam conhecidos pormenores sobre como foi debatida pelos militantes a posição conjunta definida com o PS, o funcionamento do partido leva a crer que terá sido muito discutida e debatida colectivamente, à semelhança de todas as propostas apresentadas em congresso, que começaram a ser discutidas no início do ano.

“Nós não aceitamos que no partido haja iluminados que façam um documento e o apresentem ao congresso e digam: 'agora quem é que me apoia?' Nós não funcionamos assim. O trabalho do partido... Esse é um dos nossos princípios, o nosso trabalho é colectivo. A discussão é colectiva. O que vai aos congressos não é responsabilidade deste ou daquele, tenha as responsabilidades que tiver no partido. Tem que ser resultado de uma discussão colectiva porque depois, só assim é que estamos todos comprometidos para o trabalho que vem a seguir”, considera Rego Mendes.

“Secretário-geral não é nenhum chefe”

Foi a possibilidade de transformar a sociedade que fez com que Tiago Santos de 45 anos se aproximasse do partido, uma relação de papel passado. Tornou-se militante em 2013 e neste congresso é delegado. É um dos representantes do sector laboral dos trabalhadores das artes e espectáculos. Para Tiago Santos, a discussão faz parte da democracia interna do partido e é benéfica. Não há uma coisa como “discutir demais”. Pelo contrário, é um factor de atracção.

“Um factor atractivo do Partido Comunista, é um partido onde as coisas se discutem colectivamente. E onde as decisões são tomadas colectivamente. Portanto, haver discussão é normal e faz parte da própria vivência, da própria natureza do partido”, refere.

E é também da natureza do partido aceitar opiniões ou propostas divergentes? E, se depois de muita discussão não se chegar a acordo? O que acontece a quem propôs uma ideia que não foi aceite?

Tiago Santos é peremptório na resposta. “Não há silenciamento de ideias”, diz. Acolher ideias divergentes também faz parte da natureza do partido, que devem seguir o modelo de funcionamento da discussão colectiva.

“Há uma orgânica interna, nós reunimos em grupos, secretariados, plenários, depois assembleias… Portanto, essas questões podem ser sempre apresentadas. Qualquer militante é livre de apresentar as suas ideias nos seus organismos, sempre que quiser e quando quiser”, destaca.

Uma das questões que os militantes não querem discutir em congresso é a da liderança. Porque não é para isso que serve, diz Rego Mendes.

“A liderança não se discute no congresso. O secretário-geral é eleito pelo comité central, não é o congresso. O congresso elege o comité central. Agora, os membros do comité central só são eleitos se tiverem o acordo das organizações em que militam. Desde que eu estou no partido, este é o terceiro secretário-geral. Era o Álvaro Cunhal, depois foi o Carlos Carvalhas e agora o Jerónimo de Sousa. E quando vier outro, será outro. Porque o funcionamento do PCP não vai alterar. O secretário-geral é uma figura de coordenação, de acompanhamento. Não é nenhum chefe”, clarifica Rego Mendes à Renascença.

O congresso é o local por excelência da definição do rumo a seguir e das orientações, seja para os quadros ou militantes “de base”. É o momento para discutir aquilo que Ana Gusmão define como “liderança colectiva”.

Se um congresso do PCP não serve apenas para eleger um novo secretário-geral, para que serve então?

“O congresso do partido serve para nós levarmos a nossa experiência, as nossas variadíssimas experiências da organização do partido em todo o território nacional, e com elas trocarmos experiências, reflectirmos, aprendermos conjuntamente e… para isso que nós queremos o congresso”, conclui a delegada.

Reflexões e aprendizagens que prometem acabar em uníssono no congresso. E em consenso, por falta de concorrência.

“Nós não temos listas concorrentes, não é? Porque nós discutimos a composição dos organismos dirigentes na organização do partido. Porque o problema é: nós temos todos o mesmo objectivo. Se temos todos o mesmo objectivo, só faz sentido que nós em conjunto decidamos quais são os camaradas que estão em melhor situação para dirigir o partido na prossecução desses objectivos”, remata Ana Gusmão.