O bispo do Funchal receia que "o medo" fique como "marca" da pandemia de Covid-19. “Fomos quase que obrigados por esta pandemia a ter medo uns dos outros e temo que essa marca fique e acentue a dificuldade de conviver e de partilhar a vida”, diz D. Nuno, em entrevista à Renascença.
Depois do primeiro confinamento geral “em que tudo esteve encerrado no arquipélago da Madeira, houve uma primeira reabertura e nós continuar sempre por estar semiabertos”, recorda.
"O facto de termos conseguido manter a ilha aberta, até mesmo para algum turismo, foi importante porque isso significou que não houve propriamente uma paragem completa depois daquele primeiro confinamento geral."
"Isso permitiu que os efeitos da crise não fossem tão evidentes como noutras zonas do país”, mas “numa região em que cerca de 80 por cento da economia depende do turismo, obviamente que a falta de turismo se fez sentir a vários níveis”.
“Os pedidos de apoio à Cáritas subiram bastante e se, em 2019, tínhamos 561 famílias apoiadas, em 2020 passamos a ter 853", conta.
Hoje há, todavia, sinais positivos. "No primeiro trimestre de 2021, os pedidos voltaram a descer e tivemos 643 famílias apoiadas”, avança o bispo do Funchal, revelando, ainda, que "em abril e maio, reforçou-se a tendência de diminuição do número de famílias apoiadas".
"Em abril, registaram-se 19 novos casos e em maio apenas oito", precisa.
“Isto significa que tem havido uma retoma económica e, portanto, as pessoas não vêm pedir tanto apoio, pois começa a haver trabalho”, adianta o bispo, para quem é “muito interessante o facto de se ter conseguido manter este meio confinamento, que baixou o número de infeções e permitiu também que os hotéis estivessem abertos a 50 por cento, trazendo uma certa estabilização”.
D. Nuno Brás diz que já se encontram grupos de turistas a visitar a ilha, algo que "é muito importante porque também dá às pessoas esta esperança; a esperança em relação ao turismo”.
O bispo reforça que “a Madeira, neste momento, não se consegue entender sem o turismo, faz parte da identidade do madeirense acolher turistas, ver turistas pelas ruas do Funchal, ver turistas nas levadas”.
“Há, de facto, uma certa animação e isso até psicologicamente é importante”, acrescenta.
Estes sinais de progressiva retoma não devem, contudo, permitir que se diminua a vigilância e preocupação em relação às fragilidades registadas no arquipélago. Por exemplo, D. Nuno Brás diz ser um facto que "o número dos sem-abrigo no Funchal aumentou, durante a noite vê-se bastantes mais”, mas “também é um facto a atenção e procura de soluções por parte das autoridades”.
“O ano passado, no primeiro confinamento, a Secretaria Regional encontrou um espaço e montou lá uma série de camas onde os sem abrigo eram testados e podiam estar”, adianta o prelado, reforçando que “é uma área para a qual as autoridades têm estado bastante despertas”.
Lição n.º 1: Alternativas a sector que representa 80% do emprego na região
A merecer particular atenção de quem decide está, segundo o prelado, a procura de alternativas económicas e de emprego ao turismo.
"Espera que se estejam a estudar outras soluções”, diz D. Nuno, reconhecendo que “é muito difícil numa ilha, e numa ilha como a Madeira, até pela sua orografia, encontrar alternativas, pois a agricultura é muito difícil, a pesca também apresenta muitas limitações e o mais fácil é mesmo o turismo”.
“Tenho falado com vários responsáveis que, obviamente, estão despertos para esse problema e, necessariamente, precisamos de encontrar todo um outro conjunto de atividades que não nos façam depender exclusivamente desta atividade do turismo, que é bonita, porque se trata de acolher pessoas, mas não podemos ficar limitados a ela, até porque nada nos garante que, daqui por uns anos, não haja uma outra pandemia ou que não haja um outro qualquer problema em termos de turismo."
Uma das alternativas poderá passar pela aposta no digital. D. Nuno Brás lembra que “nos últimos meses, têm chegado à Madeira os chamados nómadas digitais - gente que vem de fora, do Continente e do estrangeiro - e que encontram aqui condições para o teletrabalhado".
"Como a ilha é bonita, como as pessoas são acolhedoras fazem aqui um misto de trabalho e de férias e essa é uma atividade muito interessante em que se está a apostar”, assinala o bispo, destacando que a própria “bazuca europeia, que sublinha muito a aposta no digital, poderá ser aqui uma oportunidade muito interessante” de investimento.
Lição n.º 2: Corresponsabilidade na Igreja
A diocese do Funchal celebra está a celebrar os 500 anos da escolha de São Tiago Menor como Padroeiro principal. Foi a 8 de junho de 1521 que a Diocese e a Câmara Municipal, em contexto de peste, decidiram escolher um santo padroeiro que ajudasse a livrar do mal.
Para assinalar a data, a diocese elaborou um programa de comemorações que já sofreu algumas alterações, dado o atual contexto sanitário. Uma das alterações “foi o adiamento para outubro da chegada das relíquias do santo, que não foi possível acolher em abril”.
"Vamos ter o acolhimento das relíquias de São Tiago, que vêm de Roma, onde estão na Basílica dos 12 Apóstolos, para fazer uma peregrinação pelas várias comunidades da ilha, no sentido de dar consciência e dar a conhecer melhor o padroeiro que temos”, revela.
D. Nuno entende ser necessário “dar às comunidades esta consciência de que os santos, os apóstolos eram homens como nós, mortais”.
O bispo espera “seja também um ponto de partida importante para a retoma pastoral, até porque a evangelização, por força da pandemia, tem estado um pouco parada, a catequese foi praticamente nula”.
“Há um bom conjunto de atividades que não se fizeram e que eu espero que possam retomar e que possam constituir um novo ponto de partida para a retoma das várias comunidades em termos de evangelização”, acrescenta.
O bispo do Funchal não está pessimista em relação a eventuais efeitos negativos do confinamento no plano da participação litúrgica. D. Nuno acredita que "assim que houver a possibilidade de retomar, as pessoas voltarão, não tenhamos dúvidas disso”, porque “o cristianismo aqui na ilha sempre funcionou como um auxílio da dura vida de trabalho, a fé sempre foi uma avalancha”.
“Esta referência a Deus e esta presença de Deus no quotidiano é algo que marca a vida dos madeirenses e creio que, depois da pandemia, logo que for possível, voltará este entusiamo e haverá este retomar da vida da prática litúrgica e também das próprias atividades de evangelização”, assegura.
Para esta retoma, D. Nuno Brás considera necessário que “em termos eclesiais, se reflita muito bem e se esteja recetivo a corresponder ao apelo que o Papa fez de uma reflexão sinodal, ou seja, de participação ativa na vida da Igreja”.
“Creio que esse é um caminho muito importante e é importante que as comunidades da diocese do Funchal caminhem por aí, de forma que todos os cristãos se sintam corresponsáveis nesta vida da igreja”, refere.
D. Nuno Brás afirma ser também necessário prosseguir com o anúncio do Evangelho e “perceber que o Evangelho não é um conjunto de ideias, que o cristianismo não é uma ideologia”.
“O cristianismo é a vida concreta das pessoas e o facto de se perceber que há aqui ao meu lado alguém que vive o Evangelho e que é feliz é qualquer coisa de extraordinário e é qualquer coisa de fundamental”, acrescenta o bispo, enquanto pede “descaramento aos cristãos no anúncio do Evangelho para assim serem presença de Jesus Cristo”.
Lição n.º 3: Como vencer o medo
“Eu penso que o medo, o medo do outro é a grande dificuldade”, diz D. Nuno Brás.
"Nós fomos quase que obrigados por esta pandemia a ter medo uns dos outros, porque, no fundo, o outro que está ao meu lado pode sempre ser alguém que está infetado e que me vai infetar”.
"Estive duas vezes em confinamento preventivo porque estive próximo de duas pessoas que estavam infetadas” e “isto fez-nos olhar para o outro com receio”.
O bispo teme que “isto seja uma marca que vá ficar, esta incapacidade de nos cumprimentarmos, este termo-nos desabituados de estar com o outro”.
D. Nuno lembra “por exemplo, os jovens que durante estes dois anos se viram obrigados a estar diante do computador e se viram desaconselhados a estar com o outro nas festas nos convívios".
"Temo que isto vá permanecer e que seja uma marca que a pandemia nos deixa”, lamenta.
“Já tínhamos dificuldade em estar com o outro, agora talvez tenhamos mais dificuldade”, acrescenta.
O prelado diz que “era importante que as pessoas ficassem em casa, mas é estranho que não tenha havido quem se rebelasse”.
“Entenderam a importância de ficar em casa, mas não houve a pergunta do porquê. Faltou-nos pensamento próprio e eu temo que esta seja uma marca que a pandemia deixe nas nossas sociedades, esta falta de sentido critico de cada um pensar por si, colocar as questões, e colocar as questões essenciais. A globalização fez-nos ver a pandemia de uma forma completamente diferente, a forma de viver a pandemia foi única porque a globalização é uma realidade”, aponta.
Lição n.º 4: Todos juntos na procura da solução
Para além desta marca e dos receios do que o medo possa inculcar na sociedade, D. Nuno Brás considera muito importante “todos compreenderem que ninguém se salva sozinho”.
O bispo recorda a imagem deixada pelo Papa Francisco “de que estamos todos na mesma barca, fazemos parte de uma mesma sociedade, de uma mesma humanidade e o outro é importante e é essencial”.
“E isso é a grande lição, pois entendamo-nos: enquanto o outro não estiver vacinado eu não estou propriamente seguro." A outra grande lição desta pandemia é sobre o “lugar de Deus na nossa vida”.
“O que é que Deus tem a dizer de tudo isto? Claro que existem duas respostas muito fáceis. Por um lado, existe a resposta de dizer que isto é um castigo divino e existe a outra que é garantir que Deus não tem nada a ver com isto. São respostas demasiado fáceis”, adianta o prelado.
“Creio que vale a pena interrogarmo-nos sobre o que é que Deus tem a dizer a mim que estou no meio desta pandemia, o que é que Deus tem a dizer a toda esta humanidade que está no meio desta pandemia. O que é que Deus, no fundo, tem a ver com isto. Qual é o lugar dele?”
Esta é uma interrogação que, na opinião de D. Nuno Brás “serve para a pandemia e serve também para o todo da vida”.
“Perceber quem sou eu, que tenho todos os poderes da técnica e da ciência, e que, depois, sou derrotado por este vírus microscópico, não pode deixar de me fazer perguntar: mas, afinal de contas, quem é que sou eu, para onde é que vou, para onde é que eu caminho e de onde é que eu venho?”, conclui o bispo do Funchal.