Sanders rende-se a Hillary, depois de Hillary se render às suas ideias
12-07-2016 - 21:09
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

São medidas que poderíamos denominar de social-democratas em termos europeus, mas que na América significariam, senão uma revolução, pelo menos uma rebelião progressista.

Trinta cinco dias depois de Hillary Clinton ter garantido matematicamente a nomeação pelo Partido Democrático à Casa Branca, o senador Bernie Sanders veio finalmente a público declarar-lhe o seu apoio.

Foi num comício esta terça-feira, em New Hampshire, um estado da Nova Inglaterra, vizinho do seu original Vermont, onde Sanders bateu Clinton nas primárias por 22 pontos percentuais.

E porquê apenas cinco semanas depois de Hillary ter garantido a vitória? A resposta está nos resultados da comissão de redacção do programa eleitoral do partido para as eleições de Novembro. Os trabalhos desta comissão terminaram na semana passada e a plataforma política a que Hillary Clinton ficará vinculada nestas eleições consagrou boa parte das ideias que Sanders defendeu ao longo da campanha.

O senador sempre disse que não estava apenas preocupado com a eleição, mas que pretendia fazer uma “revolução política” na América e, embora o termo seja exagerado, a verdade é que Clinton vai apresentar-se ao eleitorado com o programa mais progressista desde os anos 1970.

Um facto que só por si já traduz uma significativa vitória de Sanders, que apesar de ter perdido as primárias vê assim consagrada na plataforma do partido ideias como a subida do salário mínimo para 15 dólares por hora (hoje são apenas 7,25); o pagamento de baixas por doença; a criação de licença de maternidade paga; a igualdade salarial entre homens e mulheres; o aprofundamento do sistema de saúde criado por Obama no sentido de o tornar universal e triplicar o seu financiamento; a eliminação das propinas no ensino superior para os estudantes cujas famílias ganhem menos de 125 mil dólares/ano; premiar as empresas que distribuam lucros pelos funcionários; acabar com os buracos na lei que permitem às grandes empresas e aos financeiros de Wall Street pagar menos impostos do que o americano médio; apostar nas energias limpas e combater o aquecimento global; reformar as leis de financiamento partidário; tornar o recenseamento eleitoral obrigatório aos 18 anos e facilitar o direito de voto; proibir as armas de guerra nas ruas.

Programa progressista

São medidas que poderíamos denominar de social-democratas em termos europeus, mas que na América significariam, senão uma revolução, pelo menos uma rebelião progressista. Hillary Clinton fica vinculada a esta agenda e, embora isso possa tranquilizar os apoiantes de Sanders, pode também trazer-lhe o afastamento de algum eleitorado moderado, decisivo em qualquer eleição.

Nesta terça-feira, porém, a candidata não parecia preocupada com isso. No comício em que finalmente Sanders a abraçou e assegurou que “irá a qualquer canto do país” para garantir que ela seja a próxima presidente, Hillary defendeu entusiasticamente todos os pontos do programa e até fez alusão a um assunto que não ficou consagrado no programa político – a rejeição do acordo de comércio com o Pacífico (TTP) – graças à oposição da sua campanha. Não se inibiu de dizer que rejeitará todos os acordos de comércio que possam ser prejudiciais à economia americana, “incluindo o TTP”.

Este foi um dos pontos em que Hillary mudou de ideias durante a campanha, porque o TTP foi até negociado por ela quando era secretária de Estado e elogiado mais do que uma vez. O outro ponto em que a candidata mudou foi o aumento do salário mínimo, que inicialmente defendia que subisse para 12 dólares, mas acabou a ceder à proposta de Sanders para os 15 dólares, o que representa uma duplicação.

A convergência pareceu portanto perfeita esta terça-feira. A candidata declarou-se “grata” a Sanders – “uma vida inteira a lutar contra a injustiça” – por ter trazido ideias mas também muitos jovens para a política que estavam nas margens, desmotivados. E agradeceu-lhes repetidas vezes pela campanha que fizeram, considerou um “privilégio” tê-los a seu lado e congratulou-se com a luta travada por ter sido “uma campanha de ideias e não de insultos”.

Depois desfiou as ideias uma a uma, as tais que o programa do partido acaba de consagrar, e alertou para os perigos do regresso da “trickle down economy” que “há 30 anos começou a descer os impostos para os ricos e tantos problemas criou no país”. Chamou-lhe economia “voodoo” porque afinal não produziu os resultados que os seus gurus anunciavam, considerou.

A lógica da “trickle down economy”, tal como apresentada nos anos 1980 pelos economistas da escola de Chicago que o presidente Reagan aplicou, era a de aliviar impostos para os de maiores rendimentos de modo a que aumentasse o investimento e a criação de riqueza que mais tarde acabaria por “pingar” também para as restantes camadas da população. Hillary disse que Trump advoga hoje a mesma receita e que “não vamos permitir que isso aconteça de novo”.

Recuperar maioria no Congresso

O candidato republicano esteve sempre presente nos discursos de Hillary e de Sanders para marcar o contraste entre aquilo que ele propõe e aquilo por que os dois se batem. Mas o comício deixou a imagem de que não é só a oposição a Trump que une estes dois democratas, já que eles se encarregaram de mostrar quanto as ideias da campanha os motivam.

E será com base nessas ideias que ambos se referiram à ambição de fazer desta eleição não só a conquista da Casa Branca, mas também a recuperação da maioria no Senado e na Câmara de Representantes. Em Novembro vão também a votos a Câmara de Representantes e cerca de dois terços do Senado.

Na verdade, para aplicar as medidas que defendem bem precisam de recuperar essas maiorias sob pena de muitas delas ficarem pelas intenções, já que os republicanos são frontalmente contra elas e a sua aprovação requer sólidas maiorias no Congresso. O facto de a candidatura de Trump estar a alienar muitos republicanos acalenta a esperança entre os democratas de conquistarem mais lugares nas duas câmaras.

Bernie Sanders enfatizou isso mesmo ao dizer que para implementar “o programa mais progressista que o Partido Democrático já teve” será necessário fazer de Novembro a conquista da Casa Branca, mas também do Senado e da Câmara de Representantes. Por isso se declarou “orgulhoso” por apoiar Hillary, que considerou uma pessoa “excepcional”.

Resta saber se os seus apoiantes pensam o mesmo. Por ora, as sondagens dizem que 85% deles estão disponíveis a votar em Clinton, um número superior aos seus apoiantes que há oito anos, por esta altura, se diziam dispostos a votar em Obama. A tarefa de Sanders de mobilizar os seus apoiantes para votar Hillary em Novembro não parece assim demasiado árdua. Bastante mais árdua será a aplicação das ideias do partido que este ano ficam com a sua assinatura bem inscrita.