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Vivi na Polónia a passagem do Ano Novo de 2019 para 2020, mais exatamente no Sul do país, a uns 90 km da Cracóvia e a cerca de 40 minutos de viagem de carro até à fronteira com a República Checa.
Lembro-me bem da lareira acesa na sala e brindes que troquei com os meus pais e o meu marido. Trocámos votos de sucesso, saúde e alegria. Lembro-me também dum pensamento, ou uma certa resolução que fiz na minha cabeça quando olhava para as árvores cobertas de neve pesada e húmida no jardim: 2020 vai ser um ano bom e diferente dos outros. Nunca adivinharia que, três meses depois, parte do que pensei se tornaria “profecia”. Sim, o ano de 2020 é bem diferente de todos os que tenho vivido até agora. E, infelizmente, por razões impensáveis. Pandemia? Qual pandemia? Há poucos meses diria: Isso só nos filmes da ficção científica, mas não na minha vida.
Claro que a Polónia não escapou ao impacto do coronavírus e, tal como outros países, ainda estamos a tentar prevenir ou reduzir os seus efeitos nocivos na sociedade, na saúde pública e na economia. É de realçar que o Governo polaco introduziu medidas bastante rigorosas no mês de março, pouco tempo depois de o vírus ter sido detetado pela primeira vez no meu país (dia 4 de março). Em consequência foram encerradas instituições, escolas, centros comerciais, teatros, cinemas, etc. As ruas ficaram desertas, as pessoas ficaram em suas casas ou, no máximo, deslocavam-se para trabalhar. Segui minuciosamente a partir de Portugal tudo o que se passava na Polónia, através de notícias, familiares e amigos. Fiquei contente ao ver a sociedade polaca disciplinada e compreensiva, a colaborar de forma responsável e inteligente. No mês de junho começou o desconfinamento, tudo cuidadosamente planeado e implementado em três fases. As pessoas ficaram aliviadas também porque os números de novas infeções estavam relativamente baixos.
Após ter feito várias tentativas para viajar para, finalmente, estar com a minha família, cheguei à Polónia há uns 10 dias. Estamos agora no final de setembro, as escolas abriram no dia 1 de setembro, a vida parece estar de volta ao “normal”. Ao que chamamos o “novo normal”. Infelizmente, os novos casos confirmados diariamente são altos: entre 1.300 e 1.600, com cerca de 30 mortos por dia, mas até é possível que os números sejam mais altos visto que a Polónia, com os seus 39 milhões de habitantes faz 20-25.000 testes por dia, ou seja, quase tantos testes como Portugal que faz 18-20.000 testes por dia, com 10 milhões de habitantes.
O vírus teima em não nos abandonar. Neste momento a Polónia está dividida em zonas vermelhas (com o maior número de novas infeções diárias), amarelas e verdes sendo estas últimas zonas relativamente seguras. A minha região, Silésia, está no segundo lugar das zonas mais afetadas. As medidas de segurança são aplicadas dependendo da zona, sendo que algumas, suaves, limitações são obrigatórias nas zonas vermelhas onde é obrigatório usar máscaras mesmo na rua, nos transportes públicos só podem estar ocupados 50% dos lugares, nos restaurantes um cliente tem que ter 4m2 livres à sua volta, é possível organizar festas tipo casamentos, mas com um número limitado de convidados (máximo 50). Continua a ser possível participar nos eventos de cariz religioso com a mesma obrigação de usar máscaras (só para os fiéis, os celebrantes podem dispensar as máscaras). Os eventos religiosos fora, ao ar livre, exigem que se mantenha a distância de 1,5m entre cada pessoa.
Agora, o que observo à minha volta, quando saio à rua?
Vejo as pessoas a passearem sem máscaras (não é obrigatório ter máscaras na rua, salvo nas zonas vermelhas), mas nos espaços públicos fechados, onde existe esta obrigação, a paisagem é semelhante: pessoas sem máscaras ou com as máscaras colocadas no queixo… Há dias falei com uma amiga que trabalha na caixa do supermercado onde costumo fazer as compras. Queixou-se que há clientes que entram na loja sem máscaras e que quando o pessoal da loja lhes chama a atenção, respondem dizendo que existe liberdade…
Falo com os meus amigos e fico ligeiramente desconcertada. Ninguém tem medo do vírus, ninguém presta muita atenção às medidas de segurança. Organizam-se festas e encontros nos cafés e eu a pensar: será que trouxe o medo da pandemia do meu amado Portugal?
Organizam-se festivais de música com o intuito de apoiar a resistência (maravilhosa, aliás) na Bielorrússia, as pessoas marcham pela vida e família (a marcha foi organizada na semana passada e contou com a presença do Presidente da República, Andrzej Duda e sua esposa), marcham ativistas trans e LGBT – vejo tanta gente sem máscaras e sem manter a distância recomendada. E eu a planear cuidadosamente cada saída da casa, armada com máscara e gel desinfetante na minha mala. Se me deparo com algum espaço público cheio de gente, viro as costas, não entro…
Sinto e observo à minha volta duas atitudes opostas: pessoas, entre elas os meus pais, que estão cansados de notícias sobre a Covid e números cada dia mais altos de novas infeções, mas que, ao mesmo tempo compreendem que a luta é nossa, da sociedade e do mundo, pela vida e pela saúde. E que um dia todos estaremos seguros. Estas pessoas tomam todo o cuidado necessário. Fazem, simplesmente, a sua parte. E outro grupo de pessoas focadas somente nos seus direitos, no direito de andar sem máscara, no direito de reclamar, de desacreditar as autoridades e médicos, a desconfiarem de tudo, incluindo na existência de pandemia, esquecendo-se dos outros seres humanos que podem pagar preço muito alto pela ignorância.
Sim, o ano de 2020 revelou-se muito diferente do que eu esperava. Mas cá estou outra vez na terra onde nasci, a tentar viver normalmente, sem me sentir sufocada, mas ao mesmo tempo com cuidado porque sou cidadã do mundo e, como tal, sou responsável pela minha saúde e pela dos outros. Acredito profundamente que vamos superar esta fase difícil e, quem sabe, vamos entrar em 2021 mais unidos nas famílias e na sociedade.
*Natalia Telega-Soares nasceu na Polónia e em 2005 mudou-se para Portugal. É professora de inglês, tradutora e doutoranda na Universidade Nova de Lisboa. Apaixonada pelas línguas estrangeiras, literatura, fotografia e cinema divide a sua vida e o seu coração entre Portugal e Polónia.