Já esperávamos que fosse rápido mas, confesso, nunca pensei que fosse no primeiro dia de trabalho parlamentar. De facto, sabíamos de antemão que este seria um assunto inevitável, mas, sinceramente, senti uma sensação de enorme desrespeito quando ouvi a notícia que os deputados do Bloco de Esquerda assumiram como prioridade das prioridades a despenalização da eutanásia. Com o Sistema Nacional de Saúde em ameaça constante de ruptura, com os doentes e os profissionais de saúde e as respectivas ordens a fazerem alertas constantes sobre a impossibilidade, cada vez mais generalizada, de tratar adequadamente quem sofre, colocar a legalização da eutanásia como prioridade só pode ser interpretada como ideologia na sua pior expressão. Não há dúvida de que não poderíamos deixar de estar de acordo com o Bloco de Esquerda quando refere que “é imperioso acabar com o sofrimento inútil e sem sentido”, no entanto, em total desacordo que a resposta seja: “despenalizar e regularizar a morte assistida”, que não acaba com o sofrimento e com a dor mas sim com a vida.
Dizem os proponentes da despenalização desta prática que ela se justifica:
1) por a pessoa ter o direito a dispor da sua vida;
2) por haver vidas em que o sofrimento e a incapacidade retiram toda a qualidade a essa mesma vida.
Por isso, doentes incuráveis, em grande sofrimento, lúcidos, deveriam ter o direito de pôr termo à vida com a ajuda de terceiros.
Estes argumentos não são consistentes. Em primeiro lugar, porque a autonomia assim invocada, ou seja a capacidade de dispor da própria vida, nunca é absoluta, antes deve ser entendida como autonomia responsável, modulada e limitada pelo enquadramento da pessoa no ambiente familiar e social em que vive. Ninguém é dono de ninguém, nem sequer do próprio corpo, componente do seu EU indissociável de todas as outras. Assim, como é lógico, se o argumento fosse válido, a eutanásia deveria ser estendida a todos os adultos e não apenas aos doentes incuráveis.
Quanto ao argumento da dor e do sofrimento, este também não resiste à análise crítica. Se é certo que muitas doenças evoluem com dor e, inevitavelmente, com sofrimento, também é verdade que a medicina encontrou meios terapêuticos poderosos para afastar esses companheiros da doença. Actualmente, quase não existem situações dolorosas para as quais não exista tratamento; no entanto, vivemos num país que a dor é tantas vezes tratada de forma desadequada, não porque não existam soluções terapêuticas, mas porque o sistema teima em falhar em inúmeras circunstâncias. No final de vida, os dados sobre a dor são preocupantes: um em dois doentes oncológicos não recebem tratamento adequado para o alívio da dor. De facto, a questão da dor incontrolável, o medo da dor, está de tal modo disseminado na sociedade que serve, como estamos a assistir hoje, indesejavelmente, como argumento para o apoio à eutanásia e ao suicídio assistido.
Quanto ao sofrimento, e como tive oportunidade de escrever nos meus artigos anteriores sobre o assunto, o Sistema Nacional de Saúde, porque não tem serviços e profissionais capazes de tratar adequadamente os doentes em fim de vida, e nós, sociedade, que tantas vezes alinhamos nesta “conspiração do silêncio” que rodeia a morte e o morrer, fazemos com que alguns, erradamente, acreditem que a solução é deixar que as pessoas peçam para ser mortas.
Não podemos ignorar, ao discutir esta questão, a experiência entretanto acumulada nos países, felizmente ainda em reduzido número, em que se encontra legalizada a eutanásia. Assim, para a próxima semana estarei de volta com este assunto.
Ana Sofia Carvalho
Professora do Instituto de Bioética
Universidade Católica Portuguesa
Este texto tem como base um texto desenvolvido pelo Instituto de Bioética e enviado para todos os jornais de inspiração Católica aquando da discussão anterior sobre a legalização da eutanásia.