Se Le Pen vencer “será o fim da República Francesa”
22-04-2022 - 07:16
 • Sandra Afonso

Na segunda volta das presidenciais francesas não está apenas em causa o futuro da França, mas também da Europa, do projeto europeu, da NATO e da democracia, alerta o catedrático britânico Paul Mason. O autor do livro “Como travar o Fascismo” diz que quando setores da esquerda francesa argumentam que Macron e Le Pen são a mesma coisa, "essa é a raiz para o regresso às câmaras de gás".

Se Marine Le Pen vencer “será o fim da República Francesa”, defende defende Paul Mason, professor universitário, formado em política e antigo jornalista do "The Guardian". Em entrevista à Renascença, diz que estamos a brincar com o fogo. Este domingo, na segunda volta das presidenciais francesas, não está apenas em causa o futuro da França, mas também da Europa, do projeto europeu, da NATO e da democracia.

Paul Mason acaba de lançar em Portugal o livro “Como travar o Fascismo” (Editora Objectiva), onde não se limita a definir o fenómeno. Alerta que estamos perante uma segunda onda fascista, de dimensão global e forte presença na Europa, incluindo Portugal.

O investigador desconstrói o discurso da extrema-direita, sobretudo na atualidade, da guerra na Ucrânia à escalada dos preços. E, sobretudo, deixa um apelo urgente à resistência.

Defende que estamos a assistir ao regresso do fascismo, podemos falar em segunda vaga?

Estamos a assistir a uma segunda ronda ou segunda vaga do fenómeno fascista. A ascensão de movimentos de extrema-direita com ideologias genocidas, cujas ideias saem de uma pequena minoria de pessoas de extrema-direita, ideologicamente comprometidas e encontram depois vida própria nas redes sociais, nas atividades de amplos grupos de pessoas.

Por exemplo, no culto QAnon, essa teoria da conspiração, originária da América, onde as pessoas acreditam que o governo é um grupo de pessoas de elite que sugam o sangue de crianças para alcançar a vida eterna. Esta ideia louca anda por aí e temos que nos questionar porquê? O que é que desencadeou o renascimento de uma maneira de pensar? Porque o fascismo não é apenas uma forma de agir, não é apenas um ritual, não é apenas uma forma de política, é uma forma de pensar.

Estes movimentos também crescem na Europa, temos exemplos em países como Itália, Espanha, Hungria, França e outros. Como se explica num continente com a história que tem de luta contra o fascismo?

Historicamente, muito poucos movimentos fascistas chegaram ao poder. Acho que os dois movimentos clássicos foram os fascistas italianos de Mussolini e o movimento nazista alemão, de Adolf Hitler.

Noutros países, chegaram ao poder por meio de um golpe militar ou da aliança com um ditador. Estou a pensar na Hungria, em Espanha, Portugal também teve uma ditadura.

Mas o que realmente me interessa são os movimentos, esses puros exemplos de plebeus de massa, ativos ideologicamente, movimentos extremistas que chegaram ao poder por conta própria. É isso que eu acho que devemos estudar, porque é contra isso que temos que nos proteger.

Também inclui a Rússia de Putin?

Na guerra contra a Ucrânia, o governo russo está a exibir muitas das características de um Estado fascista. É totalitário, bloqueou a comunicação social e a internet e alguns dos porta-vozes começam a pedir o que me parecem ser soluções genocidas contra os ucranianos. Um deles disse que toda a elite ucraniana devia ser eliminada.

Estas são ideias e ações que associamos ao fascismo. E, no entanto, Putin não chegou ao poder por meio de um movimento fascista. Nos últimos dez anos assistimos ao que chamo de arquitetura de pensamento, a estrutura de pensamento do fascismo começou a moldar o pensamento e as ações de partidos conservadores autoritários, bastante afastados de partidos populistas de direita.

De certa forma, o novo fascismo começou a ganhar a discussão com o velho populismo e o velho conservadorismo. E isso é uma coisa muito preocupante.

O que alimenta os movimentos de extrema-direita, o populismo?

Muitas pessoas supõem, por causa da história, que a extrema-direita é impulsionada principalmente pela privação económica, e isso leva à social-democracia ou ao centrismo na política. Assumem que basta resolver os problemas da pobreza e do desemprego, para acabar com o fascismo. Não é verdade.

Para mim, o que impulsiona o fascismo é o colapso de uma ideologia. Quando uma ideologia, que mantém o capitalismo unido, de repente desmorona e as pessoas correm à procura de alternativas, está criada a oportunidade para o fascismo.

Foi o que aconteceu na Alemanha?

Na Alemanha, na década de 1920, é claro que havia desemprego em massa, mas o verdadeiro impulsionador do fascismo foi o colapso de uma visão de mundo, que diz que a Alemanha era o grande país da Europa central, a força armada mais militarizada e mais capaz da Europa. Ao colapsar essa visão as pessoas correram à procura de um ponto de vista alternativo.

O que aconteceu, no nosso tempo de vida, foi o colapso de uma ideologia que chamo de neoliberalismo. O colapso da ideologia que diz que o mercado é como um computador gigantesco, que sabe o que é melhor e que pode tomar decisões por nós. A política não é importante, tudo o que importa é o mercado e a economia.

Durante 30 anos, muitas pessoas moldaram as vidas em torno desta ideologia. Até que, em 2008, entrou em colapso e parou de funcionar. E embora, por exemplo, por meio de teoria quantitativa e dívida, tenhamos mantido viva a economia capitalista - o modelo neoliberal é uma espécie de modelo económico zombie - não é possível manter uma ideologia viva através da teoria quantitativa e empréstimos.

Os seres humanos exigem respostas coerentes às grandes perguntas que fazem.


O fascismo surge como a resposta?

Infelizmente, para nós, o fascismo começa a responder de forma coerente. A mensagem número um de todos os modelos fascistas é que a imigração não é apenas ruim, é uma forma de genocídio contra “nós”, os brancos. Este é o argumento mais poderoso que eles têm porque permite todas as pequenas queixas contra imigrantes, contra liberais, contra advogados de direitos humanos, contra feministas.

Todas estas pequenas queixas juntam-se nesta calorosa teoria a que chamamos de grande teoria da substituição, que começou a estruturar o fascismo, a impulsionar a popularidade do fascismo. Ouvimos cada vez mais, da boca de políticos da direita tradicional, Putin é um deles mas há mais, como Le Pen ou Trump.

As eleições presidenciais francesas são um exemplo da aplicação prática do que está a dizer. Marine Le Pen utiliza esses argumentos, mas neste momento está a ganhar votos com um discurso menos radical. Diz que o partido de Le Pen não é tecnicamente fascista, porquê?

Sim. Porque, na ciência política, temos que ter categorias para distinguir os diferentes tipos de partido. Por exemplo, na Alemanha, nas décadas de 1920 e 1930, havia um partido conhecido por DNVP, o Partido Popular Nacional Alemã, que dizia muitas das coisas que Hitler dizia, mas não agia de forma militarista, não tinha esquadrões para bater nas pessoas na rua, não pedia abertamente o genocídio.

Ou seja, temos uma categoria política para um partido assim - populismo de direita. E, temos uma categoria política para o fascismo, porque fala aberta e extremamente nesta linguagem genocida. O que vimos em França é que Le Pen mudou a velha forma nacional, comandada pelo pai, que era um clássico (eu chamava a estes partidos fascistas dos anos 50, sessenta e setenta de bandas de tributo ao nazismo) uma banda de tributo ao velho fascismo.

Como é que o partido de Le Pen se distingue?

Le Pen modernizou e moveu o partido para o terreno populista de direita. É extremo na linguagem, mas nas ações tem por base as regras da democracia.

A prova do que Le Pen fez é a existência de (Éric) Zemmour. O partido de Zemmour (Reconquête) emergiu como um partido moderno de extrema-direita, que não chamaria de fascista, eu diria que é muito parecido com os movimentos de identidade de geração. Aliás, ele adotou muita da retórica da identidade de geração. Eles são adjacentes ao fascismo.

Na internet, França tem pessoas ainda mais extremistas do que Zemmour.

É possível travar e derrotar este extremismo?

Espero que Marine Le Pen possa ser derrotada. O livro é uma receita para derrotar Marine Le Pen.

Muitos franceses não vão concordar com isto. Quando nos deparamos com uma aliança entre a elite e a máfia, é isso a extrema-direita, temos que aliar o centro à esquerda, não importa quanto discordem entre si, devem tomar medidas práticas para defender a democracia.

Esta é a minha mensagem aos eleitores franceses e a qualquer pessoa em Portugal que esteja a ouvir e que possa votar nas eleições francesas: votem em Macron. Macron não é perfeito, é um liberal imperfeito que, de muitas formas, tem sido arrastado para a direita pela popularidade de Le Pen. Mas temos de pará-la.

Qual será o preço de uma vitória de Le Pen?

Consequências, não apenas para o povo francês, mas para o povo europeu, para o projeto europeu, para a NATO, para a democracia... Será o fim da República francesa!

Também falei na altura sobre Trump, quando chegou ao poder era um populista de direita com um projeto de autoenriquecimento, ao deixar o poder mobilizou abertamente grupos fascistas e tentou derrubar a Constituição.

Este é o fogo com o qual estamos a brincar, quando colocamos alguém como Marine Le Pen no poder. Não há garantia de que não use o gabinete presidencial para enfraquecer a democracia francesa, como Trump fez com a Constituição dos Estados Unidos.

Em Portugal, temos o caso do partido Chega, que já é o terceiro maior no Parlamento. Alertou para o crescimento do populismo de extrema-direita nos partidos conservadores, está a crescer na Europa?

Sim. O Chega é apenas mais um exemplo disso, da forma como a ideologia fascista começa a moldar e mobilizar pessoas em torno de partidos que podem tirar proveito do processo político democrático.

Em toda a Europa, se queremos evitar a repetição do que aconteceu, precisamos de acordar. Já não estamos apenas a estudar partidos. Os partidos são interessantes, podem ser derrotados nas urnas, o Chega como disse já é o terceiro [maior], mas pode ficar com o poder congelado, se a maioria progressista ganhar. Mas entretanto, online, as fantasias de genocídio, todo esse antifeminismo violento, a misoginia violenta, ganham legitimidade com estes partidos.

Foi essa a motivação para escrever este livro, "Como travar o fascismo"?

Nós, o povo democrático e progressista da Europa, temos de lutar contra a ideologia. Este livro não é um guia sobre quem é quem na extrema-direita, já existem muitos guias que são simplesmente brilhantes. O meu guia é como combatê-los e a primeira fase da luta é entender o significado da linguagem, o que está lá para moldar e mobilizar.

Um povo lutou pelo que eles acreditam que será uma espécie de guerra mundial final, civil e étnica. Esse é o objetivo deles. Eles não querem apenas menos restaurantes halal ou que as mulheres não usem o hijab. Querem o colapso massivo da sociedade ocidental.

Atualmente têm um novo tipo de arma poderosa: o discurso online?

Sim. Mas se é poderosa para eles, também pode ser poderosa para nós. Assim como na década de 1930, os governos devem proteger a democracia contra o fascismo mudando os termos em que a democracia funciona.

Por exemplo, no início da década de 1930, na maioria dos países era comum ver o que chamamos de movimentos de camisas, ou seja, grupos uniformizados, milícias que marchavam pelas ruas e espancavam as pessoas impunemente. No meu país [Reino Unido] e em muitos outros países europeus, o uso de uniformes políticos foi proibido e, embora não tenha impedido o fascismo, tornou-o mais difícil.

Havia ainda o financiamento do fascismo italiano e alemão. Era possível rastreá-lo e parar esse financiamento. Podíamos agir, o Estado podia fazer coisas para defender a democracia contra o fascismo. E a grande mensagem de um advogado alemão na década de 1930, chamado Lowenstein, era que o trabalho da democracia não é facilitar o fascismo, é impedir que o fascismo destrua a democracia.

E hoje?

No online podemos agir. Google, YouTube e Facebook já foram forçados a derrubar o incitamento à violência, incitação ao ódio racial, incitação ao genocídio. Isso aconteceu, mas precisamos ir mais além. Todos os países que têm a Constituição podem fazê-lo. Deveria ser impossível para as empresas das redes sociais usarem os algoritmos para ganharem dinheiro com o ódio racial e amplificarem mensagens de ódio racial e misoginia violenta.

Mas não corremos o risco de fazer o que combatemos, atacar a liberdade de expressão?

Significa restringir a liberdade de expressão, mas a liberdade de expressão não é um absoluto.

Para escrever este livro, visitei o Majdanek, um campo de concentração, e olhei para um caixa de betão onde 57 mil pessoas morreram num curto espaço de tempo. Fez-me pensar que não queria acabar a minha vida da mesma forma. Eles não eram apenas judeus - eu sou um quarto judeu - eles eram esquerdistas, ciganos. Eu não quero acabar assim, tenho que defender a minha vida, a vida das minorias ao meu redor que o fascismo quer colocar em uma caixa.

Sabemos que é o que querem porque o dizem repetidamente na Internet, abertamente, em grupos de discussão, em salas de chat, no WhatsApp. Não podemos tolerar a promoção do genocídio, por mais livre que queiramos que o nosso país seja. É por isso que defendo uma democracia militante.

É também por isso que defende uma aliança política e cultural?

Sim. Em França e Espanha, nos anos 30, havia frentes populares. Tinham acordos formais entre partidos centristas e de esquerda, que levaram a governos de centro-esquerda nos dois países. É claro, politicamente, ambos os governos falharam.

Em Espanha falhou porque Franco invadiu e lançou um golpe militar e uma guerra civil, mas tinha de o fazer porque não conseguia chegar ao poder democraticamente. Em França, apesar dos erros enormes do governo da Frente Popular Francesa que o fez cair, impediu a França de se tornar fascista por meio de milícias. A França tornou-se fascista porque perdeu a guerra e foi ocupada no regime de Vichy.

Os dois governos de frente popular têm melhores lições para nós, hoje, do que a alternativa.

Qual é a alternativa?

A alternativa, nos anos 30, foi a extrema-esquerda, que dizia para nunca alinhar em liberais contra fascistas, porque liberais e fascistas são a mesma coisa. Não acredito, quando ligo a televisão e vejo setores da esquerda francesa a argumentar que Macron e Le Pen são a mesma coisa. Essa é a raiz para o regresso às câmaras de gás.

Como historiador do fascismo e antifascista, estou determinado a tentar vencer o argumento de que não vamos ficar mais uma vez parados e nos recusarmos a distinguir entre um liberalismo ruim e opressor, que ataca a classe trabalhadora, e o fascismo que torna impossível ser da classe trabalhadora. Porque foi isso que o fascismo fez da última vez, não destruiu apenas as organizações do movimento trabalhista, os sindicatos, os partidos de esquerda, destruiu as pessoas.

Devemos estar em alerta para o perigo de que isso aconteça novamente. Por menores que sejam as organizações, já viram em França, em Espanha, em Portugal, a ascensão desses partidos híbridos, metade fascistas, metade populistas. Pode voltar a acontecer. É preciso agir.

Não podemos travar esta guerra contra o fascismo sem uma resposta económica. Fala sobre a reconfiguração do capitalismo. Isso é suficiente?

Eu sou um anticapitalista, mas acho que entre agora e 2030, período em que precisamos travar a quantidade de carbono emitida nas nossas sociedades, isso será feito sobre o capitalismo. Tal como nos anos 30, os países que interromperam o processo de radicalização e o colapso foram aqueles que entenderam que o Estado é um veículo bastante poderoso para gerar bem-estar, empregos e crescimento. Agora, além disso, precisamos de bem-estar, empregos, crescimento, justiça social e justiça climática.

Precisamos de reconfigurar rapidamente a economia. É uma oportunidade aberta para produzir empregos verdes, descarbonizar a economia de forma justa, ir a todas essas pequenas cidades industriais onde a extrema-direita se está a organizar e trazer alguma esperança e uma visão de futuro. Uma Europa verde, descarbonizada, socialmente justa, é uma grande visão do futuro. Estou entusiasmado por os políticos centristas da Comissão Europeia realmente entenderem isso.

Nunca é suficiente simplesmente reformar e melhorar alguns empregos ou aumentar alguns padrões de vida. Mas é preciso fazer isso, estamos a viver a maior crise de custo de vida em décadas.

A extrema-direita também aproveita esta subida de preços.

Por causa da guerra na Ucrânia, por causa da recuperação da Covid-19, por causa da globalização, a realocação de recursos da China, os preços de commodities, semicondutores, energia, alimentos, estão todos a subir acentuadamente. E o que diz a extrema-direita? A extrema-direita diz que é tudo culpa de outra pessoa. É a narrativa clássica.

Os governos têm o poder, é um movimento radical, para limitar os preços, reduzir o preço dos alimentos, limitar o preço da energia, reduzir o preço do transporte público. Deve ser feito. A economia não é a causa do fascismo, está a alimentá-lo.

Vemos com a Marine Le Pen, o que ela faz é misturar queixas económicas com queixas raciais e de género. Se retirarmos a questão económica ou se a diminuirmos, temos melhores condições para lutar contra este colapso ideológico pernicioso que está a ser produzido pelos partidos populistas de extrema-direita.