O Bloco de Esquerda não lidera qualquer Câmara, tem 12 vereadores, 125 deputados municipais e 213 autarcas de freguesia. Longe dos milhares de autarcas dos maiores partidos, os bloquistas querem aumentar o número de eleitos para influenciarem mais.
Em entrevista à Renascença, o dirigente José Maria Cardoso defende que é preciso cumprir esse objetivo para evitar que as políticas continuem a ser as mesmas, nomeadamente na habitação. Deputado municipal em Barcelos e deputado no Parlamento, onde preside à comissão de Ambiente, José Maria Cardoso avisa já que o Bloco recusa leituras nacionais do que vierem a ser os resultados eleitorais de 26 de setembro.
As eleições autárquicas vão ser, naturalmente, um dos temas da rentrée do Bloco – o Fórum Socialismo, um conjunto de debates e comícios divididos em dois dias: no sábado em Braga, no domingo em Almada.
É deputado na Assembleia da República e é deputado municipal em Braga. Da sua experiência quais são as principais diferenças?
Os temas que se tratam e o modo de funcionamento é muito diferente. A Assembleia Municipal de que faço parte e que é a maior do país, porque tem o maior número de freguesias, reúne-se espaçadamente, cinco vezes por ano, pelo que os temas são acumulados e, por vezes, são aqueles temas clássicos próprios das reuniões ordinárias. A preparação, a forma de intervenção não tem qualquer paralelismo.
Um deputado na Assembleia da República tem mais capacidade de intervenção e de influência?
Sim, indiscutivelmente. O papel das assembleias municipais está muito reduzido, é um papel deliberativo, mas na maior parte dos casos é uma espécie de ressonância das decisões da Câmara Municipal pela influência que tem sobre os partidos e sobre os presidentes de junta, por isso a capacidade de intervenção esgota-se muito facilmente.
Seria conveniente dar mais intervenção às assembleias municipais?
Acho necessário que se faça pelo menos uma reflexão sobre qual o papel das assembleias municipais. Precisam de outro tipo de poderes, de outro tipo de intervenção, de ser muito mais capazes de acompanhar e fiscalizar o trabalho do executivo e ter meios legais que possibilitem que assim aconteça. Neste momento, a sua atividade prática é muito reduzida comparativamente com aquilo que podia ser.
Também seria preciso falar mais de fiscalização pelas assembleias municipais?
Certamente. Esse deverá ser o papel das assembleias municipais: aferir, acompanhar a vereação, o trabalho executivo. Este papel precisa de ter base legal para se poder intervir.
Muitas vezes, fazem-se recomendações, aprovam-se moções até por unanimidade e que o executivo pura e simplesmente esquece ou ignora propositadamente. Formam-se comissões de acompanhamento de determinadas áreas de intervenção no concelho a que o executivo depois não dá sequência. Acontece frequentemente um certo abuso de poder.
Aliás, uma das críticas que o Bloco de esquerda faz ao poder autárquico é este vício que se foi criando de uma espécie de presidencialismo municipalista. Ou seja, quem decide é o sr. presidente, depois a vereação acompanha e o resto dos membros, designadamente, da assembleia municipal não são auscultados para nada.
Defendemos cada vez mais a envolvência das pessoas num espaço de democracia participativa que o poder local tem todo o dever de fazer, criando condições e estímulos para que isso aconteça.
É muito através das assembleias municipais que o Bloco pode ter alguma intervenção porque não tem conseguido uma grande implantação autárquica. A que é que atribui a falta de implantação autárquica do Bloco de Esquerda?
O Bloco de Esquerda surgiu, comparativamente aos outros partidos, muito mais tarde. Portanto, tem mais dificuldade em conseguir criar condições para essa implantação.
Depois, surgiu com um discurso que, por vezes, não é entendido de imediato. É muitas vezes necessário criar condições para reflexão e envolvência para as questões que levantamos. E, por outro lado, alguma dificuldade do próprio discurso em determinados meios que são mais conservadores, pouco atreitos à mudança.
Mas temos vindo a implantar-nos. Já não é aquela imagem que se tinha do Bloco urbano; hoje é cada vez mais um Bloco implantado em todo o território nacional. Concorremos a todas as capitais de distritos, temos representação na maior parte dos distritos através das assembleias municipais, das assembleias de freguesia também em alguns casos.
Temos vindo a aumentar de forma consistente a nossa influência, a nossa importância e é muito isto que queremos trazer para a campanha: a importância que tem uma voz como a nossa, uma voz desta esquerda para alterar o que é necessário e urgente.
Em que é que esses autarcas do Bloco de Esquerda podem fazer a diferença? O que é que pode ser característico dos autarcas do Bloco?
Há um tema que temos já debatido e queremos trazer para a campanha e nos parece muito importante que os municípios debatam nestas eleições autárquicas que é o combate às alterações climáticas. Temos um problema gravíssimo e temos de o saber enfrentar. Não é um problema do futuro, é do presente, é já de ontem e temos de saber criar condições para o discutir.
E não o podemos discutir na base pura e simples de o colocar como um ponto no programa. Todos os partidos vão falar da questão do ambiente. Temos é de fazer com que as alterações climáticas sejam o ponto fulcral da nossa política, tem de ser o aspeto que vai revolucionar todos os outros. A mudança de paradigma e de criação de condições de combate às alterações climáticas tem de ser o cerne, o centro da política porque há todo um conjunto de manifestações que terão de ser alteradas em função disso.
Temos de fazer uma transição da prática agrícola, da prática industrial, do trabalho, das condições de trabalho e daquilo que são as manifestações favoráveis para a diminuição das poluições. Por exemplo, vamos insistir muito na questão do transporte coletivo, dos meios a criar por cada um dos municípios para conseguir criar condições de resposta imediata e urgente à descarbonização.
Este é um tema central que não basta colocar como um adorno.
E é um tema em que os eleitos do Bloco podem fazer a diferença?
Creio que sim, porque temos políticas pensadas para estas matérias e sabemos pensar as políticas no decorrer do tempo.
Por outro lado, há que pensar a política, há que pensar a intervenção política nos municípios, facto que na maior parte dos casos não acontece. Faz-se tudo muito de circunstância, como se fosse uma gestão doméstica, mas é preciso pensar os municípios, o que queremos que os nossos municípios sejam daqui a 10, 20, 30 anos, em que pontos se deve investir e apostar, que oportunidades há e que muitas vezes são desaproveitadas porque não há pensamento político sobre as decisões a tomar.
O Bloco concorda com o processo de descentralização de competências tal tem vindo a ser feito?
Descentralizar é sempre positivo, é democratizar, é aprovar as decisões das populações e este é um princípio importante. Outra coisa é falar-se do processo de descentralização que está em curso e que nós chamamos de municipalização.
É, por um lado, muito perigoso porque está a atribuir competências aos concelhos que podem alterar o princípio universal das decisões e das oportunidades. Por outro lado, estamos a falar de um país onde uma larga maioria dos municípios são de escala muito reduzida. Temos cerca de 70% dos municípios com populações inferiores a 50 mil habitantes e isto retira escala a um conjunto de atribuições de competências que é feito a esse município.
O que depois acontece é que começam a externalizar serviços que os próprios municípios dão conseguem dar resposta. É preciso criar patamares intermédios, que sejam capazes de ser supramunicipais.
Como as comunidades intermunicipais?
Nem por isso, porque elas não têm uma vertente importante que é a democratização de todo o seu processo e, por isso, somos defensores da regionalização. Achamos que é mais do que tempo de se colocar a questão da regionalização como um tema central para debate.
Tem havido um tempo para dizer que não é o tempo devido para se discutir e se debater, tanto da parte do PS como da parte do PSD. Não tem havido essa vontade política, mas é importante que se debata essa questão, porque é uma das formas possíveis de combate às assimetrias, que têm vindo a aumentar. A regionalização tem riscos, mas tem de ser discutida.
E que riscos é que pode ter?
Tem riscos como qualquer mudança tem. Pode não corresponder ao que é expectável, pode haver decisões que podem até criar algum centralismo dentro da região, pode haver modos de funcionamento viciados que podem ter resultados contrários ao pretendido.
Agora é preciso perceber quais são as vantagens. Nós, em Portugal, não temos um poder intermédio, passamos de um poder nacional, que centraliza toda a atividade, e depois temos um poder local reduzido muitas vezes a pequenos concelhos de dimensão muito diminuta. Há aqui um espaço intermédio que não é ocupado por ninguém.
Esta crise pandémica que temos vindo a travessar evidenciou um facto: a falta de articulação regional.
É preciso não fazer como o PS que, mais uma vez leva a questão ao seu congresso do fim-de-semana, para ser discutida para finais de 2024, como se fosse mais uma vez arrastar o processo, até com objetivos políticos definidos.
É um calendário desenhado à luz do calendário presidencial?
Com certeza que sim.
Quando diz que a descentralização pode criar desigualdades, em que é que está a pensar? A transferência de competências na área de educação e saúde pode criar desigualdades?
É verdade. Reafirmo o que disse: descentralizar é democratizar e é importante que se faça como princípio. O que está em causa é o resultado dessas alterações, isso tem de ser acompanhado e monitorizado.
Falando no campo da educação, a transferência de competências no âmbito da intervenção dos programas letivos, na oferta de opções e determinadas disciplinas, a própria gestão do pessoal não docente que hoje já é competência das câmaras, isto pode acrescentar poder às câmaras e concretamente ao seu presidente.
Não nos podemos esquecer que, em muitos dos nossos concelhos, o principal empregado é a Câmara Municipal, o principal cliente de serviços é a Câmara Municipal. Isto dá um poder imenso às câmaras municipais que muitas vezes é usado no sentido perverso de fazer criar uma teia de influência que facilmente perpetua no poder quem sabe jogar com estes diferentes intervenientes.
Em Portugal, costuma dizer-se que não se ganham autarquias, perdem-se autarquias, quem tem domínio, quem tem o poder está à partida em grande vantagem em relação aos restantes, a partir destas formas de intervenção política. Por isso, é preciso ter algum cuidado.
Já disse que o Bloco tem vindo a aumentar a presença autárquica. Quais são as expetativas para estas eleições: aumentar o número de eleitos, alcançar câmaras?
Vou responder de forma politicamente correta: aumentar o número de eleitos. Não temos, propriamente, um número como objetivo; temos a pretensão óbvia de aumentar o número de eleitos, seja nas câmaras municipais, através de vereações, seja nas assembleias municipais, nas assembleias de freguesia, que são muitas vezes esquecidas e postas de lado, mas têm uma importância muito grandes nas decisões objetivas das freguesias.
Queremos é contribuir cada vez mais para o que é necessário e urgente fazer-se. Já falei no combate às alterações climáticas, na questão da democracia participativa, falo na questão da transparência, no combate à corrupção que cresce de importância neste momento, até pelos dinheiros que já se perfilam no horizonte poderem vir a ser distribuídos às câmaras municipais através do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR). Precisamos aqui de ter um controlo muito apertado, um escrutínio permanente sobre como é que se aplicam estes dinheiros.
Um dos problemas graves que temos é a habitação e não podemos estar a falar de criar estratégias locais de habitação e as cartas municipais de habitação e depois irmos entregar essa construção aos mesmos de sempre. Estaremos a perpetuar os mesmos vícios. Não vamos requerer intervenção ao nível da transição dos processos agrícola e florestal, que é necessário fazer, e vamos copiar os mesmos erros que fizemos até aqui.
Precisamos de modelos novos, diferentes, de transição, que criem um paradigma novos. É para isso que queremos contribuir e, por isso, a nossa intenção é termos cada vez mais influência sobre estas decisões e, naturalmente, isso passa pelo aumento do número de eleitos.
Receia que o PRR seja mal utilizado ou não cumpra as expetativas?
Obviamente que temos muitas dúvidas sobre o modo de funcionamento. Não é duvidar de ninguém, trata-se do historial que temos da aplicação de verbas comunitárias que, numa boa parte dos casos, não corresponderam ao que era necessário e prioritário.
Por outro lado, porque havendo muito dinheiro é muito atreito a determinado tipo de negócios, determinado tipo de interesses e, de uma forma geral, as câmaras municipais têm estado muito sujeitas e muito vulneráveis a este tipo de pressões.
Por isso, pretendemos criar condições para que haja uma aferição permanente e constante e, para isso, é necessário termos poder de intervenção e de alerta.
A habitação é uma das conquistas de Abril não concretizadas: a habitação pública corresponde a 2%.
A habitação é uma prioridade do PRR. Será que com o PRR que se vai concretizar essa promessa?
Terá de ser uma prioridade que tem de obedecer ao que é necessário e não torná-la num negócio, numa especulação imobiliária como tem acontecido nos últimos anos e é evidente já não só nas grandes cidades, mas também nas pequenas cidades.
Ainda em relação a expectativas e resultados eleitorais, nestas eleições haverá novos concorrentes, nomeadamente o Chega, que pretende afirmar-se como um partido autárquico e tem candidaturas em muitos locais, algumas delas com antigos candidatos de outros partidos. Que leitura é que pode ter um resultado do Chega melhor do que um resultado do Bloco?
Não quero de maneira alguma fazer comentários sobre resultados de outros partidos, muito menos do partido que acaba de referir. Deve-se fazer um debate pelas ideias, pelas propostas, pelo que achamos prioritários, pela democracia.
Mas, não fazendo nenhuma contabilização, não fazemos do resultado das eleições autárquicas qualquer leitura de interpretação política para perceber se estamos a corresponder mais ou menos. A leitura para um cenário nacional é enviesar o próprio resultado.
A leitura autárquica há-de ser só autárquica, é isso?
Há-de ser autárquica e correspondente ao que é em cada uma das localidades. Aí aferimos naturalmente se a nossa expetativa de podermos eleger foi concretizada ou não foi, não leituras enviesadas que se possam fazer para âmbito nacional.