Leia também
- Rampa deslizante na eutanásia. Mito ou realidade?
- Eutanásia. Os casos mais marcantes e polémicos
- Eutanásia. Onde é legal, e em que condições?
- Eutanásia? Distanásia? Cuidados paliativos? Um dicionário para orientar no debate
Os projetos de lei que visam a despenalização da eutanásia são confusos, ambíguos e até contraditórios em si mesmos.
A conclusão é de um grupo de investigadores, todos doutorados em bioética pelo INstituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, que analisaram três das cinco propostas que vão estar em debate na quinta-feira.
Bloco de Esquerda
A proposta de lei do Bloco de Esquerda é analisado por António Sousa, Helena Gonçalves, Joana Teles e Paulo Borges, que começam por criticar o facto de o Bloco usar um eufemismo para evitar o termo eutanásia.
“Não consideramos a utilização do termo Antecipação da Morte o mais adequado. A nomenclatura usada deve ser inequívoca, para que possa ser facilmente compreendida pelos cidadãos, pois o termo escolhido e proposto parece-nos ambíguo e pouco rigoroso”, escrevem.
A principal crítica, porém, é dirigida à utilização do termo “sofrimento duradouro e insuportável” como critério para se aceder à eutanásia.
“A noção de sofrimento duradouro e insuportável será sempre pessoal e subjetiva, ainda que passível de partilha e exposição a outros, em algum grau. Temos a noção de que grande parte do sofrimento referido pelas pessoas em situações de doenças difíceis, se prendem com a dor física concreta, mas em maior escala com o sofrimento que advém de uma situação de dependência, solidão e perda de sentido futuro.”
“O projeto apresentado parece colocar a aceitação dos pedidos de eutanásia no mesmo plano das decisões de recusa de tratamentos, de abstenção ou suspensão de terapêuticas, mesmo quando destas decorra o encurtamento da vida da pessoa. As duas realidades têm, porém, valorações éticas muito distintas”, concluem os autores.
Na análise critica-se ainda a ausência de um tempo de espera entre o diagnóstico da doença e a tomada de decisão e, por fim, conclui-se que a implementação da eutanásia ou do suicídio assistido “quando ainda estamos muito longe de um suporte de cuidados paliativos de qualidade é fazer pesar mais uma posição sobre a outra e, de alguma forma, eleger um caminho sobre o outro”.
Leia aqui na íntegra a avaliação.
PAN
O projeto de lei do PAN é abordado de forma diferente pelos doutorados Abel Abejas, Cristina Pedrosa e José Soares.
Estes três autores optaram por elencar uma série de perguntas ao PAN, relevando assim as áreas do projeto que consideram ambíguos ou pouco claros.
Tal como na análise ao projeto do Bloco, os investigadores questionam a definição de “lesão permanente” e de “sofrimento intenso”.
“Colocam-se aqui algumas questões de índole bioética: seria admissível, como justificativo suficiente para um pedido de morte antecipada, a existência de uma qualquer lesão definitiva, nomeadamente paraplegia, amputação de um membro, enucleação de globo ocular, cegueira, surdez? Estes são exemplos de lesões graves definitivas, incuráveis, que podem promover dependência de terceiros e causar sofrimento muito importante, mas que não provocariam a morte do paciente e, portanto, a eutanásia não corresponderia a antecipação de morte inevitável, mas sim ao homicídio do paciente; podemos igualmente perguntar o que se entende por sofrimento intenso? Pode o sofrimento ser objetivamente medido? Se sim: por quem e como?”, perguntam.
Nesta análise, que pode ler na íntegra aqui, são questionados ainda aspetos relacionados com a objeção de consciência e a proposta de se registar na certidão de óbito a doença ou lesão que estava na base da decisão. “Ora, como vimos previamente, existem lesões definitivas, incuráveis, que provocam sofrimento intenso e dependência de terceiros, mas que não levam à morte do doente. Neste caso deveria o médico mentir, registando na certidão de óbito, como causa de morte, por exemplo, paraplegia ou causa desconhecida?”
PS
O terceiro projeto de lei a ser analisado, e o que merece maiores críticas, é o do PS.
Neste documento, os autores Fábio Carvalho, Nina de Sousa Santos, Pablo Hernández Marrero e Sandra Valente Queirós começam logo por descrever a proposta como “contraditória em si própria e confusa”.
E dão exemplos. “Afirma que o Estado não deve impor uma única conceção de vida, devendo a ordem jurídica reconhecer a autonomia da vontade da pessoa. Contudo, o procedimento apresentado não assenta na vontade da pessoa, mas num parecer médico, o que contraria a lógica do argumento.”
“Assegura que não se trata de uma liberdade geral de cometer suicídio porque existe uma decisão individual, livre e esclarecida, o que equivale a dizer que quem se suicida não pode decidir da mesma forma, o que é manifestamente inverosímil”, dizem ainda os autores, acrescentando ainda que “defende que quem se encontra numa situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal é capaz de manifestar uma vontade atual, séria, livre e esclarecida, mas simultaneamente reconhece que a lei precisa de ser exigente na salvaguarda da autonomia na medida em que ‘o pedido é feito por alguém fragilizado’”.
“Por fim, refere a vantagem de não se tratar de uma legislação pioneira e de, com base na experiência internacional, poder afastar, o argumento da ‘rampa deslizante’, ao classificar o pedido do doente como uma mera possibilidade e não como um dever, o que se afigura insólito e despropositado”, consideram, na análise que pode ser lida na íntegra aqui.
Para além de várias críticas de natureza ética, os autores mostram-se perplexos com a alegação feita na proposta de que “é (...) possível identificar hoje, com clareza, uma área de confluência maioritária concludente de que a despenalização da eutanásia, desde que em circunstâncias especialmente circunscritas, não é inconstitucional, tendo o legislador margem de liberdade para regular as condições especiais para a prática da eutanásia não punível”.
Comentam os doutorados em bioética: “Primeiro, a que se referem os autores do texto quando mencionam existir uma ‘confluência maioritária’? A uma maioria parlamentária? A uma maioria social? À maioria dos juízes e legisladores? Em que dados se sustenta esta ‘confluência maioritária’ e a quem se refere? Segundo, e tal como já referimos, se a prática de eutanásia é, em si mesma, algo positivo, bom, social e eticamente aceitável, então porque definir ‘circunstâncias especialmente circunscritas’? E, considerando a necessidade de definir estas circunstâncias, quem as determina, com base em que valores, e quem garante que as mesmas se mantenham como tal?”
Para além destes três projetos de lei existem ainda outras duas propostas, do Partido Os Verdes e da Iniciativa Liberal, que não foram objeto de análise por estes especialistas em bioética, mas que serão também discutidos e analisados na quinta-feira.