A 31 de março, António Vitorino foi um dos convidados de José Pedro Frazão no programa da Renascença "Da Capa à Contracapa". Acompanhado de Gonçalo Matias, doutor em Direito pela Universidade Católica e autor de um ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre migrações e cidadania, o antigo ministro da Defesa aprofundou o tema das crises migratórias, numa altura em que há 258 milhões de pessoas refugiadas ou deslocadas em todo o mundo.
No dia em que António Vitorino venceu as eleições para ser o próximo diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM), a Renascença recupera algumas das suas declarações no programa. Para o novo líder da agência da ONU para as Migrações, "é impensável" que haja organizações supranacionais a definir quantas pessoas é que cada país deve acolher, da mesma forma que é urgente pensar políticas de desenvolvimento que criem condições para combater as migrações forçadas.
Sobre a atual crise das migrações
"A pressão migratória vai aumentar. É uma constante, vai persistir e vai aumentar. E se não houver instrumentos e instituições, designadamente a Organização Internacional das Migrações e o Alto Comissariado [da ONU] para os Refugiados, que contribuam para regular estes movimentos de pessoas, o que nós vamos assistir é à proliferação de redes criminosas, tráfico de seres humanos, de passadores de imigrantes clandestinos, que são potencialmente atentados à salvaguarda a integridade dos próprios imigrantes, que são sobre-explorados ou às vezes até detidos em cativeiro. [...] As migrações não são maioritariamente Sul/Norte mas sim Sul/Sul. Esses países precisam da ajuda da comunidade internacional e do Norte. [Esse financiamento talvez possa ser melhorado] sobretudo se a OIM for mediadora do novo Pacto Global para as Migrações. E um português está em ótimas condições para fazer esse papel."
Sobre as tensões entre o ACNUR e a OIM
"O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados e a OIM têm de melhorar a coordenação. Há que desfazer algumas tensões. Não pode ser uma guerra de competências."
Sobre o Pacto Global que está a ser negociado para melhor gerir os fluxos migratórios
"A dificuldade é que este documento vai ter de ser aceite por países que têm perspetivas muito diferentes sobre os fenómenos migratórios, entre países de origem, países de trânsito e países de destino. Por exemplo, nos países de destino há diversas matizes, se nós olharmos para a Europa vemos que as migrações em Portugal e até talvez em Espanha não são um fator de conflito político interno, mas há países – uma França, uma Alemanha ou mesmo com o Brexit no Reino unido ou mais recentemente as eleições italianas – onde a questão central é a questão das migrações. É difícil antever a possibilidade de haver um texto juridicamente vinculante."
Sobre a importância desse Pacto
"Para não ser apenas mais uma declaração política, depende do seu conteúdo e, nesse sentido, a que é que nós podemos aspirar? Primeiro que os países assumam compromissos no âmbito dessa declaração, isto é, que se comprometam com o desenvolvimento de políticas que têm objetivos comuns. E em segundo lugar que haja um mecanismo de acompanhamento, de fiscalização e de reporte, de informação, sobre os progressos ou alterações ou ausência de progressos na aplicação desses compromissos."
Sobre os objetivos do documento
"Acho completamente impensável que haja qualquer instância supranacional, seja internacional seja mesmo ao nível europeu, que tenha a responsabilidade de definir quantos imigrantes são admitidos por um país, porque isso varia muito, é muito flexível, é muito subjetivo, na medida em que os imigrantes admitidos têm de ser aqueles que têm possibilidades de ser integrados. E o primeiro limiar de integração é o mercado de trabalho. Não faz nenhum sentido estar a admitir imigrantes para o desemprego, quer dizer, isso é absurdo, porque nem a sociedade precisa deles nem os próprios imigrantes se sentirão realizados ao viverem num país estranho e sem terem oportunidades de entrada no mercado de trabalho. Portanto nós não estamos a falar de objetivos quantitativos. Estamos a falar de boas práticas e de objetivos a atingir do ponto de vista qualitativo, por exemplo, garantir o respeito integral pelos direitos humanos dos migrantes, independentemente do seu estatuto jurídico. Os direitos fundamentais, os direitos humanos básicos, são direitos que têm de ser respeitados mesmo que as pessoas estejam num território de um Estado em situação irregular e mesmo que sejam expulsas desse território, essa expulsão tem de ser feita de acordo com regras que respeitam a sua integridade física, a sua integridade moral e as suas condições de saúde, por exemplo. [Nas declarações de direitos humanos] são direitos universais, mas muitas vezes há quem duvide que elas se apliquem ao caso dos imigrantes. Ora aí está uma boa oportunidade para o Pacto Global tornar claro que os Estados se obrigam, no desenvolvimento das suas políticas de imigração, a respeitar os direitos humanos dos migrantes."
Sobre o contributo que a UE pode dar
"A UE está numa situação peculiar, porque está a viver o dia a seguir à crise que nem sequer, em meu entender, resulta do número de pessoas que chegaram, mas resulta sobretudo de ter passado para as opiniões públicas a sensação de que os Estados tinham perdido o controlo sobre as suas próprias fronteiras externas e que, portanto, os Estados estavam numa situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, hoje a preocupação principal da União Europeia é garantir o controlo das suas fronteiras externas e isso é fundamental para garantir uma migração regular. O que é talvez mais inovador neste momento é que há um grande consenso na comunidade internacional – seja em países de origem, seja em países de trânsito, seja em países de destino – sobre a estreita ligação entre políticas migratórias e políticas de desenvolvimento. E esta ligação é feita na Agenda 2030, isto é, nos objetivos do desenvolvimento sustentável aprovados pelas Nações Unidas. Levou dez anos a negociar e a fazer pressão para que a ONU reconhecesse esta ligação e em que medida é que as políticas de desenvolvimento podem contribuir para fixar as pessoas nos seus lugares de origem – porque em regra a migração deve ser uma opção e não forçada. Portanto as políticas de desenvolvimento podem e devem permitir às pessoas que fiquem nos seus países, onde nasceram e onde têm de ter condições para serem felizes, trabalharem e realizarem-se, mas também as políticas de desenvolvimento devem permitir que aqueles que pretendem emigrar como opção livre têm as qualificações, o treino e as capacitações necessárias para poderem ter sucesso no processo migratório. E nesse sentido é preciso uma cooperação internacional entre os países de origem e os países de destino e esse é um elemento muito importante deste Pacto Global que está agora a ser negociado."
Sobre os medos relativos à imigração
"Há medos e ansiedades suscitados pela imigração mas que têm a ver com outras questões que nada têm a ver com migrações. Citando Papa Francisco sobre os migrantes como bodes expiatórios, esses medos podem corroer as democracias. Este trabalho de garantir cooperação entre sociedades de acolhimento e grupos de migrantes passa por empresas, escolas e sistemas de saúde. A OIM tem vários programas, sobretudo na questão da saúde e integração no mercado de trabalho."
Sobre a fuga por causa de perseguição religiosa
"É uma das causas de muitas deslocações. Essa discriminação acaba por ser combatida pela comunidade internacional logo nos locais onde há perseguição religiosa."