"Experimentei haxixe com 10 anos. Drogas duras com 14. Curei-me com sucesso, após várias tentativas, aos 30 anos", explica Diogo [nome fictício], já com 51 anos de idade.
Magro, com hematomas nos braços e de olhar perdido, tenta explicar o regresso recente ao consumo. "O confinamento pode ter contribuído. Eu moro aqui na zona e, na altura, fui buscar. Precisava. E foi até agora. Já passou a fase Covid há dois anos e tal."
A voz calma e trémula é própria de quem acabou de acalmar o vício. Injetou uma das doses diárias na sala de consumo vigiado na Quinta do Loureiro. Só com a ajuda de uma das enfermeiras de serviço conseguiu encontrar uma veia.
Parece algo totalmente contranatura, ver uma enfermeira a procurar uma veia num braço já muito picado. Mas é esse o papel destas e de outras técnicas: garantir que o consumo é feito em segurança, com a supervisão de pessoal qualificado que poderá intervir em caso de overdoses. E já o tiveram de fazer várias vezes.
Diogo encosta-se às costas de uma cadeira. Está farto de estar em pé. Garante que há cada vez mais consumo a céu aberto.
"Principalmente aqui isso acontece. Noto cada vez mais consumo a céu aberto, principalmente de pessoas sem-abrigo e imigrantes, muitos do Bangladesh e Paquistão, que estão cá ilegais e já traziam o vício de onde vêm."
Sai da sala onde decorreu a entrevista, longe de muitos olhares. Entra Francisco, de 70 anos.
Fuma e não se injeta, porque o coração não o permite. Tem a figura típica de um lobo do mar: cabelo mais branco que grisalho, em parte tapado com um gorro, e barba farta da mesma cor, numa cara queimada pelo sol.
"Vem muita gente estrangeira para Portugal", diz Francisco. "Não arranjam estabilidade para esta gente. Não têm trabalho e a maioria nem sequer tem identificação. Eu moro ali no Castelo, desço a rua e estou no Martim Moniz. E os que lá estão vejo-os aqui, a dar nela."
E são cada vez mais, refere Rodrigo Coutinho, coordenador clínico da sala de consumo vigiado.
"Num dos programas, o das unidades móveis da metadona, são 1.300 por dia e 30% daquela população é imigrante. São pessoas que já consumiam opioides, mas de forma diferente, a partir das plantas, por exemplo, com doses muito mais baixas do que é com a heroína. Aqui começam com heroína, com consumos mais gravosos e mais complicados."
São consumos mais difíceis de resolver, porque o acompanhamento desses doentes é muito complicado.
"Há uma dificuldade imensa de chegarmos a eles devido à língua, que não nos permite fazer entender, e culturalmente também há coisas muito diferentes. Normalmente são indocumentados. Todo o trabalho de apoio em relação à saúde", explica Rodrigo Coutinho, "é complicado de fazer com eles, porque não têm acesso aos serviços de saúde por não terem documentos".
Ainda nas instalações da sala de consumo assistido, uma explicação de Elsa Lucas Belo, diretora da Associação Ares do Pinhal, que gere a sala de consumo assistido na Quinta do Loureiro - a primeira resposta da sociedade civil ao problema das dependências.
A primeira sala de consumo assistido do país abriu a 18 de maio de 2021, duas décadas depois da entrada em vigor da política de descriminalização das drogas. "Desde que abrimos esteve sempre cheio. Estamos sempre a funcionar na capacidade máxima, cerca de 300 por dia. E a capacidade das salas está sempre cheia. As pessoas que encontrou ali à entrada estão à espera de vaga para poder entrar."
Na sala de fumo, em que a droga é aspirada, seis utentes recebem um quadrado de papel de alumínio através de um alçapão na porta que dá acesso à sala onde estão as enfermeiras. Frente a esta sala, uma outra, mais ampla que a primeira, onde várias bancadas ao longo das paredes estão parcialmente ocupadas por dois outros utentes, mas estes de drogas injetáveis.
Elsa Belo espera que não se regresse ao passado. "A situação no bairro está complicada, mas não se compara ao que era antigamente, quando cinco mil pessoas vinham aqui comprar e por aqui ficavam a consumir. Não podemos estar numa cegueira e deixar que o fenómeno cresça", sublinha a diretora da Ares do Pinhal, que pede ação e soluções concretas.
"Tem de haver mais investimento público. A Câmara de Lisboa tem feito um bom trabalho connosco. Tem tido alguma iniciativa política, comparativamente ao que o governo tem feito. Este assunto tem de voltar de novo às prioridades do governo e temos de pensar em novas respostas que vão ao encontro destas pessoas", defende Elsa Belo.
Do outro lado da Avenida de Ceuta, Giovana Oliveira chega para mais um dia de aulas da Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha, ao lado da quinta do Cabrinha e frente à Quinta do Loureiro. Nem no Brasil, na cidade onde nasceu, via o que vê na zona do antigo Casal Ventoso.
"Eu nunca tive contacto com isso. Por exemplo, andar e ver seringas na rua. Pessoas a procurar seringas no lixo. Quando cheguei comentámos bastante que no Brasil não vimos e aqui, na Europa, vimos". Giovana referia-se a Amanda Alves, também brasileira e aluna da escola, que acha mais perigoso o vale de Alcântara do que o Brasil que conhece.
"O povo acha que no Brasil, onde eu moro, em Goiás, é perigoso. Mas la não se vê isso na rua. Para mi chocou-me, porque não é essa a minha realidade. Não se vê ninguém a pedir dinheiro para a droga. Aqui achei mais perigoso"
Tomás Picado, outro aluno, lembra o dia em que, do outro lado da Avenida, uma ambulância chegou para recolher o corpo de um toxicodependente, alegadamente vítima de uma overdose. E Verónica Rodrigues pede uma maior e musculada presença policial.
Nessa mesma manhã, e depois de uma rusga às primeiras horas do dia, a PSP juntou-se à Polícia Municipal e fechou alguns espaços de consumo de droga a céu aberto, entaipando-os. E retirou de vários locais da Quinta do Loureiro carros abandonados, onde se consumiam drogas.
Quem os ocupava ainda por lá continua.