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Num belo texto publicado no passado dia 25 de março em vários jornais europeus, o escritor e académico italiano Antonio Scurati classificava Milão, a cidade onde vive, como a “capital mundial do covid-19”. A cidade rica, elegante, sofisticada, desejada por todos, a cidade da moda e do design, ostenta agora um triste título.
Ostentava. A capital mundial do covid-19 é agora Nova Iorque, também ela rica, elegante, sofisticada, desejada por todos, a cidade da moda, do design, e de muitos outros atributos. Em pouco mais de uma semana, Nova Iorque roubou a Milão o indesejado título, registando agora mais de 5 mil mortos e mais de 85 mil infetados, enquanto a capital da Lombardia anda pelos 3 mil mortos e 30 mil infectados.
E o estado de Nova Iorque não ultrapassou apenas Milão, ultrapassou também qualquer outro país em número de infectados. A Espanha tem agora 157 mil infetados, o país do mundo com mais registos, enquanto o estado de Nova Iorque tem 160 mil.
Mas mais do que os números, já de si aterradores, chocam certas imagens. E Nova Iorque acordou esta sexta-feira sob o efeito de choque de imagens de valas comuns para enterrar mortos numa ilha da cidade. Um drone registou imagens de homens envergando fatos protectores brancos a cobrir de terra caixões de pinho na ilha de Hart.
Com as morgues a abarrotar e camiões frigoríficos com a capacidade esgotada por cadáveres ali depositados como recurso nos últimos dias, a cidade não teve alternativa senão recorrer a valas comuns. Habitualmente, as morgues guardam os corpos não reclamados durante 30 dias, um prazo impossível de cumprir no atual contexto. Daí o recurso às valas comuns, em que cada caixão leva apenas escrito o nome do morto.
São imagens que já não se viam desde meados dos anos 1980, quando a sida irrompeu como epidemia incontrolável. Mas desses tempos lembrar-se-ão apenas os mais velhos. Num país jovem como a América, imagens de valas comuns onde se enterram corpos anónimos em caixões de pinho (ou em sacos plásticos, nos casos mais extremos), remetem-nos para outros continentes, para paragens longínquas onde conflitos sangrentos provocam milhares de vítimas sem eira nem beira.
O governador do estado, Andrew Cuomo, lembrou que no 11 de setembro morreram em Nova Iorque 2753 pessoas e que nesta sexta-feira o número de mortos já tinha ultrapassado os 5 mil. “É chocante, doloroso, de cortar a respiração. Nem tenho palavras para isto”, disse.
Cuomo tem sido um dos principais protagonistas desta crise. Nos seus briefings diários, não se tem inibido de criticar a forma como a administração Trump tem gerido a situação. Especialmente nos primeiros dias em que o caos estava instalado em Washington e o presidente hesitava entre salvar vidas e negar a realidade, o governador de Nova Iorque surgiu perante o país como a voz da sensatez e da responsabilidade.
Disse que Trump não estava interessado em ajudar a sua cidade, não queria saber da tragédia que se avizinhava, e exigiu ação por parte da administração, nomeadamente o fornecimento de material de proteção para os profissionais de saúde como máscaras, batas, óculos, luvas, mas sobretudo ventiladores para salvar vidas.
Fiel ao seu estilo de nunca aceitar responsabilidades por aquilo que corre mal e nunca pedir desculpa por nada, Trump remeteu para os estados o problema do fornecimento de material de combate à epidemia, o que fez com que os estados entrassem em concorrência para adquirir tudo aquilo de que necessitavam.
Resultado: os preços de muitos equipamentos dispararam, abrindo caminho a uma enorme especulação e ao encaminhamento de material para os estados que tinham mais dinheiro disponível em vez daqueles onde o equipamento era mais necessário. Cuomo afirmou, a certa altura, que o que se passava era como estar a leiloar no e-bay, a plataforma online onde tudo está disponível pela melhor oferta.
E deu um exemplo concreto: um carregamento de ventiladores que Nova Iorque tinha acabado de encomendar para os seus hospitais ficou em risco quando o fornecedor telefonou a dizer que um outro estado tinha dado mais dinheiro por eles. “Vocês cobrem a oferta?”, perguntaram do outro lado da linha.
Enquanto isto acontecia no terreno, no briefing diário na Casa Branca, Trump acusava Cuomo de ter perdido uma oportunidade de comprar ventiladores por bom preço uns anos antes. Isto é, muito antes da epidemia ter ocorrido… Um presidente que negou as consequências dramáticas do vírus até ao último minuto a exigir a um governador capacidade de antecipação ou até de adivinhação!
Num outro dia afirmou que Cuomo queria 30 a 40 mil ventiladores, mas ele, Trump, achava que não eram necessários tantos. Que sabe Trump de cuidados de saúde para dizer que não são precisos tantos ventiladores, interrogaram-se então muitos observadores.
A resposta estava no genro, Jared Kushner, que montou na Casa Branca uma task force alternativa à do vice-presidente Mike Pence e que só reporta a Trump. Trabalhando apenas com ex-colegas de faculdade e amigos, Kushner centrou-se no setor privado e resolveu recolher dados sobre os stocks de material clínico dos estados.
Quando veio a público dizer que muitos estados não precisavam daquilo que reclamavam porque eles próprios possuíam esse material, desencadeou uma “guerra” verbal ruidosa. Os desmentidos foram vários e a tensão agravou-se quando alguns estados pediram que lhes fosse fornecido material clínico proveniente da reserva estratégica do país e Kushner respondeu que essa reserva era federal e não se destinava aos estados.
Caiu o Carmo e a Trindade. O que significava isso? Que uma reserva federal é só para os membros da administração e para quem está na capital do país? Se uma reserva estratégica não serve para acudir à população quando está ameaçada serve para quê? As críticas foram demolidoras, incidindo sobretudo na ignorância e impreparação de Kushner para exercer um cargo de conselheiro principal do presidente.
O problema é que o presidente não é menos ignorante e menos impreparado do que o genro, como se sabe. Se dúvidas houvesse, a gestão desta crise pôs a nu toda a incapacidade da administração e a incompetência dos seus apaniguados. Além de boa parte dos governadores republicanos terem resistido a adotar medidas de distanciamento social — ainda há alguns estados onde a vida decorre normalmente — outros há que demonstram a sua ignorância sobre o coronavírus de forma gritante.
Dois exemplos. Esta semana, o governador da Geórgia disse numa conferência de imprensa que “só nas últimas 24 horas” é que tinha sabido que pessoas assintomáticas também podem transmitir o vírus. E o governador da Florida, que só aceitou decretar medidas de confinamento depois de receber um telefonema de Trump, disse na quinta-feira que está a pensar reabrir as escolas porque o vírus não mata ninguém com menos de 25 anos. Em ambos os casos, bastar-lhes-ia ter consultado o site do Centro para Controlo de Doenças para evitar proferir tais dislates.
Mas não é só a ignorância que mata gente na América. A descoordenação das operações é flagrante. Face aos primeiros sinais alarmantes da epidemia e perante a escassez de material clínico, responsáveis da FEMA, a agência de proteção civil, começaram a telefonar para países amigos a pedir ajuda. Um desses telefonemas foi para a Tailândia.
Têm máscaras, luvas, batas, óculos, zaragatoas, ventiladores, que nos possam fornecer, quiseram saber os agentes da FEMA. Resposta: falta-vos esse material? Mas vem neste momento a caminho da Tailândia um barco americano com esse tipo de material para nos ajudar!
O que tinha acontecido? A USAID, a agência do Departamento de Estado para a Ajuda Internacional, tinha enviado para a Tailândia material clínico no âmbito das suas funções habituais e ninguém sabia de nada no resto da administração. A descoordenação é, portanto, patente. Não há na administração quem coordene os vários departamentos e toda a gente parece estar em concorrência com toda a gente. É o estilo que Trump cultiva e sempre cultivou — fomentar rivalidades à sua volta para mais facilmente reinar.
Ao pôr os estados a concorrer entre si pela aquisição de material vital para salvar vidas, Trump permitiu que muitos negócios prosperassem. É dinheiro que sai diretamente dos cofres públicos para os bolsos de alguns especuladores, mas isso não parece preocupar o presidente. É o seu contributo para relançar a economia antes do fim da crise…
Isto enquanto a América continua a liderar distanciada o ranking mundial dos infectados (475 mil) e em breve liderará também o dos mortos. Para já conta com quase 17 mil mortos, de que as imagens das valas comuns em Nova Iorque são um macabro — e traumático — símbolo.