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Esta semana, a Diocese de Beja foi a última a confirmar a receção da lista dos nomes de alegados abusadores. No total, as 21 dioceses portuguesas receberam 98 nomes. Mas no relatório da Comissão Independente (CI) podia ler-se que só a Diocese de Lisboa recebeu testemunhos referentes a 76 pessoas que terão cometido abusos contra crianças.
Como se explica a diferença de números?
No relatório final, apresentado a 13 de fevereiro, a Comissão Independente acautela que os números devem ser lidos e processados com sensibilidade e que não podem ser “simplesmente somados”.
Os esclarecimentos sobre as metodologias que permitiram quantificar os casos nas dioceses e nas congregações foram dados à Renascença por Francisco Azevedo Mendes. O historiador e professor na Universidade do Minho liderou uma equipa de académicos nos processos de pesquisa dos arquivos e de tratamento de dados.
A quantificação no quadro eclesiástico dos casos e das pessoas abusadoras, que resultaram dos testemunhos das vítimas à CI, permitiu avançar com a investigação histórica nos arquivos e começar a avaliar a responsabilidade institucional.
Estes quadros revelam que existe um grande contraste entre o número de testemunhos que foram apresentados à CI e a pouca documentação que as próprias dioceses e congregações produziram sobre casos de abuso sexual de menores.
A equipa de investigadores trabalhou com dioceses e congregações durante vários meses para garantir a fiabilidade dos números. Francisco Azevedo Mendes clarifica o processo que o grupo de investigação teve junto das instituições:
- “Ao colocar as situações testemunhadas à Comissão Independente no quadro eclesiástico, nas dioceses ou nos institutos religiosos, nós construímos listagens que foram sendo sucessivamente revistas nas reuniões de trabalho com os responsáveis eclesiásticos”, começa por explicar Francisco Azevedo Mendes.
- “Estas listagens estavam cronologicamente organizadas, registando as variáveis mais expressivas, sempre com respeito pelo testemunho completamente anonimizado”, sublinha.
- De acordo com professor, que liderou o grupo de investigação histórica, um dos elementos incluídos “nas listagens foi precisamente o nome do eventual abusador, quando ocorria no referido testemunho à Comissão Independente. Mesmo que muitas vezes só se tenha registado um nome ou um apelido, algumas vezes insuficiente para identificar uma pessoa concreta. Mas este indício foi registado”.
Outras informações foram esclarecidas pelo capítulo sete do relatório da Comissão Independente, que está disponível ao público e pode ser consultado online.
Dados não podem ser “simplesmente somados”
A soma total das pessoas abusadoras constantes nas tabelas da distribuição por dioceses, congregações e instituições é de 537. Isto quer dizer que existiram 537 abusadores? A resposta é "não", de acordo com o relatório da CI e a sua metodologia de trabalho.
Como refere o documento, estes dados não podem ser “simplesmente somados” e é preciso entender como é que eles estão tabelados.
Os abusos foram contabilizados nas dioceses de acordo com a data em que ocorreram. Neste processo, o grupo de investigação histórica encontrou vários desafios.
Primeiro, o território das dioceses não corresponde diretamente aos distritos, o chamado enquadramento civil, segundo a qual foi desenhado o inquérito. Assim, existem correspondências que não podem ser feitas diretamente.
Depois, a delimitação geográfica das dioceses não foi sempre a mesma. Isto quer dizer que um abuso decorrido na mesma paróquia pode não ter acontecido na mesma diocese, em anos diferentes.
Até 1975, o Patriarcado de Lisboa abrangia as dioceses de Santarém e de Setúbal, que foram criadas nesse ano. O mesmo acontece em Braga, que incluía a diocese de Viana do Castelo, apenas criada em 1977.
Portanto, todos os abusos decorridos antes destas datas foram contabilizados nos antigos Patriarcado de Lisboa e Arquidiocese de Braga. Ao mesmo tempo que as três dioceses mais recentes só incluem abusos que aconteceram depois da sua data de fundação.
Mesmo abusador pode ser quantificado mais do que uma vez?
Em abusos isolados, isto não altera a quantificação das pessoas envolvidas, porque um abusador corresponde a uma pessoa abusadora.
Mas, um mesmo abusador pode ser quantificado como várias pessoas abusadoras se um abuso continuado tiver ocorrido em anos diferentes na mesma paróquia, quando esta pertencia a dioceses distintas.
Além disso, se um abusador tiver alterado a sua residência e diocese e tiver, em ambas, abusado sexualmente de um menor, ele terá sido quantificado como duas, ou mais, pessoas abusadoras, em diferentes dioceses.
Um outro desafio é a anonimização dos registos. O inquérito apresentado às testemunhas não incluia “informações sobre a pessoa abusadora”, conforme pode ler-se no relatório.
O nome do abusador, por exemplo, não consta das perguntas diretas feitas às vítimas. Estes surgem no testemunho da vítima, caso ela tenha decidido nomear ou conhecesse a pessoa que abusou de si.
Parte dos registos referem-se a abusadores desconhecidos ou a pessoas nomeadas apenas com o primeiro ou último nome. Esta anonimidade do abusador faz com que a identificação de casos repetidos seja mais difícil.
Contudo, o trabalho do grupo de investigação também passava por clarificar algumas informações nos testemunhos das vítimas e encontrar situações coincidentes. Francisco Azevedo Mendes explica que:
“Podemos ter uma situação que está no limbo, que não tem o nome de um eventual abusador no testemunho dado à CI, mas que através da verificação documental proporcionada pelas congregações e pelas dioceses conseguimos, posteriormente, chegar à conclusão de que o abusador tem um nome.”
O grupo de investigação histórica contabilizou 35 casos por levantamento próprio e na pesquisa nos arquivos que correspondem a testemunhos recebidos pela comissão. Os casos em que esta sobreposição acontece também não podem, por isso, ser adicionados aos restantes.
Por fim, um possível total de abusadores não pode incluir o número exclusivo do Corpo Nacional de Escuteiros. Os dados referentes ao CNE estão tabelados separadamente, mas foram incluidos nas dioceses em que aconteceram. Esta referência é feita no texto do relatório.
O número total de testemunhos validados é de 512, mas as tabelas apenas quantificam 448. Afinal, há menos vítimas? Não.
Durante a avaliação dos testemunhos, verificaram-se vários casos em que não foi possível identificar a que diocese pertenciam a vítima e o abusador à data da ocorrência do abuso.
Estes casos não foram incluídos nas tabelas, porque estas são exclusivamente para localizar os abusos na diocese ou congregação correspondente.
O que está a ser feito?
O trabalho nas dioceses e congregações para verificar e consolidar os dados reunidos durante esta investigação continua após o fim dos trabalhos da Comissão Independente.
Francisco Azevedo Mendes confirmou à Renascença que as tabelas que quantificam os casos ainda estão em revisão em situações pontuais, pois há reuniões de trabalho com alguns institutos religiosos que ainda não se realizaram.
Destas reuniões, à semelhança do que aconteceu com as dioceses e demais institutos religiosos, já resultaram e podem resultar correções. Essas correções serão introduzidas até finais de abril.