"A Quaresma é o tempo para não nos conformarmos com a mediocridade", afirma o padre José Manuel Pereira de Almeida, em entrevista à Renascença.
As interpelações da mensagem do Papa para a Quaresma deste ano, “Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade”, e os desafios que o tema traz ao nosso tempo, são o mote para uma conversa com o professor de Teologia Moral Social e Doutrina Social da Igreja.
Doutorado em Teologia e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa (UCP), o padre José Manuel Pereira de Almeida é secretário da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, coordenador Nacional da Pastoral da Saúde.
Médico especialista em Anatomia Patológica, é membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e do Conselho Nacional de Saúde. É também assistente da Comissão Nacional Justiça e Paz e da Cáritas portuguesa e da Cáritas do patriarcado.
Entre outras responsabilidades, tem uma vasta experiência pastoral à frente de uma das paróquias mais centrais de Lisboa, a paróquia de Santa Isabel.
Na mensagem para a Quaresma, o Papa alia a conversão à questão da liberdade. Mas, para muitos, essa ligação não é assim tão evidente, pois há quem diga que a fé limita e é um entrave à liberdade.
Há muitas maneiras de entender a liberdade. De facto, a fé é, para os que creem, o grande ato de liberdade, de acolhimento de uma proximidade criadora e libertadora de Deus que nos faz também criadores de proximidade. O caminho que nos propõe o Papa diz, "através do deserto, Deus, guia-nos para a liberdade", é exatamente essa ideia de que a conversão não é uma coisa escura e cinzenta, é um lugar de alegria e de esperança, exatamente porque vamos ao encontro da liberdade maior.
No fundo, é como um tratamento médico, em que a pessoa tem uma ferida ou uma coisa que funciona menos bem e é preciso, às vezes, passar por uma certa dor para se tratar?
Eventualmente sim, também há tratamentos sem dor, mas a questão da dor ou do sofrimento nunca é um fim em si. De facto, não somos doloristas ou masoquistas. Os cristãos sabem que a vida comporta um certo exercício e o Papa refere que o tempo de conversão é tempo de liberdade, mas que o tempo de agir é também tempo de parar e, no caso do parar, na Quaresma, a oração, o centrar na palavra de Deus e a presença do irmão ferido são os dois lugares em que Jesus se torna mais próximo.
Para ajudar a perceber o que acabou de dizer, o Papa alerta para o risco de desejarmos poucochinho. Parte daquela imagem do exílio do povo eleito, para recordar que, no tempo de Moisés, quando se tratava de êxodo da escravidão para a liberdade, muitos acharam que, afinal, era melhor ficar agarrado aos ídolos do faraó, com medo de arriscar. Mas isso não acontece só no povo eleito.
Pois não. E, sobretudo, porque o êxodo nos é narrado com aqueles 40 anos no deserto, em que a fome e a sede motivavam saudades dos tempos em que ao menos havia comida com abundância e bebida, mesmo que isso comportasse uma condição de escravidão. E essas saudades do passado, enquanto escravidão são, de facto, uma tentação.
No fundo, é desejar pouco, ou nada, é resignar-se.
Sim, é resignar-se. E a ideia de que a Quaresma é este tempo favorável para que não nos conformemos com a mediocridade, é uma proposta que é óbvia, não é?
E que ídolos são estes agora? Porque os ídolos do faraó nós descartamo-los, não têm nada a ver connosco, mas com os ídolos de hoje já e diferente. Aliás, o próprio Papa até fala do "apego ao dinheiro, a certos projetos, ideias, objetivos, à nossa própria posição”.
O Papa resume, em geral, todas essas coisas na mentalidade mundana ou mentalidade dominante que, de alguma maneira, é sempre a mentalidade daqueles que nos dominam. Portanto, é um critério que assenta no eu e na importância do eu, enquanto os outros, nem os vejo ou só os vejo se me interessam.
E como é que se sai disso? Hoje em dia, é tudo muito vertiginoso. É certo que cada época, tem os seus riscos, parece até que é mais difícil agora do que na altura de Moisés.
A nossa época é sempre uma época extraordinária porque, primeiro, é a nossa. Depois parece-nos sempre o melhor ou pior consoante a perspetiva, mas é aquele que é o tempo que nos é dado. E certamente, é aquele em que temos maior consciência, digo eu, da complexidade do real e das coisas que nos envolvem e a proposta que é dada pelo Decálogo, que o Papa também refere, é dada por causa da ação libertadora de Deus em que Deus toma a iniciativa, não é o povo que pede, é Deus que age e age para o libertar.
Porque Deus sabe melhor o que é bom para nós do que nós próprios.
Exatamente. E, portanto, manda o Moisés com essa função. O Moisés é uma figura extraordinária. Tudo começa naquele encontro da sarça. Se não fosse a curiosidade de Moisés, ainda lá estavam, não é? Quer dizer, é meter o nariz ver o que ali se passava... é bom ter curiosidade.
Mas, agora, o Papa também se interroga: "como é que se explica que, tendo a humanidade chegado ao limiar de fraternidade e de níveis de progresso científico, técnico , cultural e jurídico, capazes de garantir a todos a dignidade, se continue a tatear na escuridão desigualdades e conflitos?" No seu caso, ao acompanhar a realidade social do país e a presença da Igreja no terreno, também reconhece isto?
Acontece sempre que nos subtraímos ao olhar do outro, não é? Quando, afinal, eu me centro em mim - naquela autorreferenciação de que o Papa também fala frequentemente - e excluo o outro.
Virar a cara para o lado?
Assobiar para o lado, por exemplo, que é uma coisa que a gente sabe o que quer dizer.
E como é que saímos disso?
Arriscando o ser olhado pelo outro e olhar o outro não é? O outro é importante para mim; sem o outro, eu não sou. Eu só sou na relação eu-tu, ou eu-nós, em que sou envolvido num coletivo que é um nós, em que eu me percebo e é outro que me dá essa possibilidade. Se eu estivesse aqui diante desta mesa e com este papel e com este microfone, isto era muito importante. Mas se eu não te tivesse diante de mim, esta conversa nem era possível. E se não fossem os ouvintes que nos estão a ouvir, tudo isto era vão e sem sentido. Portanto, a ideia de que o sentido da vida é encontrado na relação interpessoal, é o que, em termos de inter-relação, permite, de facto, compreender a existência. Ou seja, que a nossa existência é só a nossa coexistência, isso muda tudo.
Na sua experiência de acompanhar a presença capilar da Igreja, ligada a esta questão dos desafios da Pastoral Social e também da mobilidade humana, o que é que mais o preocupa agora? Tem mudado muito, desde que está à frente desta responsabilidade?
Sim, tem mudado muito. Já lá vão alguns anos (e já tenho mais de 71 anos, devo estar a acabar este serviço) que tem aumentado muito. E tem diversificado muito a condição dos pobres. Tem aumentado muito os pobres que a gente não vê.
Percebe isso pelos pedidos que chegam?
Exatamente. E têm aumentado muito os sem-abrigo que nós vemos, mas, para vermos, é preciso irmos aos lugares onde eles estão. E são diversificados, só para falar das grandes cidades. Portanto, em Lisboa, Porto e Setúbal há pessoas em condição de sem-abrigo de forma diferente, uma realidade que me parece ser mesmo uma urgência. E agora, eleições feitas, há que enfrentar desafios concretos.
Sobre a realidade dos que não são protagonistas, não lhe parece que o podem serde outra maneira, mas sem dar nas vistas? Por exemplo, os mais simples e, muitas vezes, os mais pobres e discretos, são, parao Papa, "motivo de esperança, porque daí brota uma força silenciosa de bem que cuida e sustenta o mundo". Que grande paradoxo. Como é que isto acontece?
Nós acreditamos na nossa tradição que, de facto, ao identificar-se com o pobre e com um ferido, com o marginalizado, Jesus espera por mim. E a forma como essas pessoas vivem o que vivem, em termos de projeto de vida, é mesmo o lugar de onde se tece a santidade de vida. "Fora dos pobres não há salvação", dizia o padre Schillebeeckx (perito no Concílio Vaticano II), a propósito do" fora da Igreja, não há salvação", portanto, é essa atenção ao silêncio de quem salva e salva dessa maneira, como vive de uma forma tão dada e entregue, é comovente.
Também me impressiona nesta mensagem o que o Papa diz sobre "o povo dos pequeninos e humildes", considerando-os uma nova humanidade, porque não cedem ao fascínio da mentira. Mas este povo também pode incluir pessoas com dinheiro, não é? E pode haver pobres orgulhosas e arrogantes.
Pois pode, claro. Trata-se sempre de categorias genéricas, é evidente.
É por isso é que a Quaresma existe? É para nos limpar de tudo o que impede de ser pobre coração?
Absolutamente!
Mas ser pobre de coração, às vezes, também é visto de forma depreciativa...
Mas nunca é, aos olhos da nossa tradição. A ideia do pobre de espírito não é ser tontinhos. Por que é que, aos olhos de Deus, nas bem-aventuranças, os pobres são felizes? Porque vivendo a situação em que estão, em que objetivamente vivem na sua carne, a opressão dos outros que lhe fazem ser pobres, sabem que a sua vida está nas mãos de Deus e isso é tudo.
E isso tem capacidade e é "força silenciosa de bem que cuide, sustenta o mundo?".
Exatamente, é a santidade.
E todos os batizados deveriam ser protagonistas disto?
Sim, tal qual; e a Quaresma é para isso.
Isto remete para a multiplicidade da Igreja, nas várias frentes e que o Papa definiu, quando esteve no Mosteiro dos Jerónimos, ao dizer que os fiéis são chamados a formar uma calçada portuguesa. E os fiéis "são os ladrilhos preciosos, que compõem um tal pavimento acolhedor e brilhante que o Evangelho há de de pisar". É uma bela imagem onde não pode faltar nenhuma pedrinha, senão, damos logo, conta disso...
Sim, e as pedrinhas somos nós, exatamente.
Imagino que, também na sua paróquia, exista esta multiplicidade assim.
Absolutamente, a paróquia tem essa grande força que é a diversidade das pessoas e os dons de cada um. E às vezes passam quase despercebidos.
E o seu objetivo é que a calçada funcione...
E esteja composta (risos).
Ainda nos Jerónimos, o Papa disse: "queremos sonhar a Igreja portuguesa como um porto seguro, para quem enfrenta as travessias e naufrágios e tempestades da vida".
Pois e é bom ter sido dito nos Jerónimos, num discurso tão adequado à nossa história e àquele lugar.
Também no início do pontificado, dizia que a Igreja devia ser um hospital de campanha em tempo de guerra. No fundo, é este porto seguro.
E no que diz respeito à Pastoral da Saúde, é essa a imagem habitual e recorrente.
Nesta mensagem, o Papa dá uma indicação de caminho que vai além da típica oração, esmola e jejum e pede "abertura e esvaziamento para depois nos enchermos da medida certa do amor de Deus". E curiosamente, como sinal de esperança, cita o que disse aos jovens na Universidade Católica em Lisboa.
É verdade. "Procurai e arriscai", disse ele, recordando que estamos nesta forma sinodal de ser Igreja em que a Quaresma há de ser um tempo de “decisões comunitárias, pequenas e grandes opções contracorrente capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade”, portanto, repensar os estilos de vida.
Ir contracorrente não é assim tão óbvio. Hoje em dia, quem vai contra a corrente, arrisca-se a ser marginalizado.
Exatamente, é a ideia da mentalidade dominante. Então, o “procurai e arriscai” é-nos proposto, exatamente, porque temos que abraçar o risco de pensar que “não estamos numa agonia, mas num parto”, como o Papa disse na Universidade Católica. Ou seja, é uma dor que é preciso tratar. Não é um fim, é sempre um meio. Quando acabamos em dor, a história não está completa.
O Papa diz que muitos bispos de vários lados desabafam com ele, dizendo que há um défice de esperança, mas no fundo, esta mensagem da Quaresma fala de esperança…
Absolutamente, não podemos não a ter, nem viver assim.
Mas não é difícil, hoje em dia, falar de esperança, enredados como estamos em tantos assuntos no dia a dia?
Pois é, mas há sempre uma “menina esperança” para citar Charles Péguy, que é aquela que, afinal, nos toma pela mão e nos faz prosseguir.
Isso significa que temos dentro de nós uma centelha que deseja verdadeiramente, mesmo que às vezes seja sufocada?
Seguramente. E nós havemos de ter ouvidos para a ouvir e um coração para a sentir.
O discurso do Papa na Universidade Católica lembra aos universitários, que "nós não estamos doentes, estamos vivos”. Só que o problema é que, “em vez das perguntas difíceis que às vezes nos custa colocá-las, preferimos respostas fáceis que anestesiam”. Então, que conselhos nos deixa para não andarmos anestesiados e tomar a sério este desejo que nos constitui, movido pela esperança?
Diria que hoje, se ao fim da tarde ou à noite, ao olhar para o dia, conseguir descobrir um lugar, um momento em que, contra tudo e contra todos, contra os atropelos do quotidiano, de facto, alguém se me dirigiu ou tive um olhar especial para uma pessoa que se cruza comigo, que esse momento seja de reconhecimento e dizer obrigado ao Senhor, por Ele se ter feito tão próximo e tão presente.