Imagine que uma agência de talentos admite décadas de abusos sexuais cometidos pelo fundador. A presidente, sobrinha do fundador, demite-se, e é substituída por um novo presidente... Que também é acusado de abusar sexualmente de jovens rapazes. É isso mesmo que está a acontecer no Japão, com uma agência especializada em bandas masculinas de j-pop.
Na quinta-feira, Julie Keiko Fujishima admitiu, numa conferência de imprensa, as décadas de abusos sexuais cometidas pelo próprio tio, Johnny Kitagawa, que fundou a agência Johnny & Associates. Julie anunciou a própria demissão e, na sequência de uma investigação interna que confirmou os abusos sexuais "repetidos e continuados", pediu "profundas desculpas às vítimas, pessoas afetadas e fãs".
Na mesma conferência de imprensa, o novo presidente, Noriyuki Higashiyama, foi questionado pelos jornalistas acerca das alegações sobre abusos que ele próprio terá cometido, publicadas num livro em que é alegado que Higashiyama massajava as virilhas dos rapazes e expunha os seus genitais.
O novo líder da agência respondeu de forma lacónica: "Não me lembro claramente. Talvez tenha acontecido, talvez não tenha. Tenho dificuldades em recordar-me", disse, citado pela BBC.
Higashiyama é um antigo membro do grupo musical Shonentai, ator e apresentador de televisão há muito representado pela agência Johnny & Associates, e deve liderar a agência no processo de compensação das vítimas. A sua escolha como presidente foi criticada por muitos, que apontam para a longa história com a agência.
Aludindo a questões acerca de bullying com jovens artistas, o novo presidente da Johnny & Associates que é possível que tenha sido mais duro com eles, e que pode ter feito coisas como adolescente ou jovem que não faria agora.
Higashiyama declarou que nunca foi vítima de Kitagawa, mas que estava ciente dos rumores. "Não podia, nem fiz, nada sobre o tema," admitiu, dizendo que "vai demorar tempo a recuperar a confiança, e estou a pôr a minha vida em risco por este esforço".
Alegações ignoradas desde o final dos anos 80
Desde 1988 que vinham sendo publicadas alegações contra Kitagawa, uma figura poderosa no entretenimento japonês. No entanto, o fundador da Johnny & Associates, que morreu em 2019 - aos 87 anos -, nunca foi acusado de qualquer crime.
Em março, a BBC transmitiu o documentário "Predador: O Escândalo Secreto do J-Pop", expondo 50 anos de abusos sexuais por Johhny Kitagawa. Já em abril, o músico japonês de origem brasileira Kauan Okamoto tornou-se na primeira vítima a vir a público e a permitir tanto a publicação do seu nome como da sua fotografia.
No Clube de Correspondentes Estrangeiros em Tóquio, Okamoto, que assinou um contrato com a agência quando tinha 15 anos, disse ter sido abusado em pelo menos 20 ocasiões e ter visto colegas seus a serem também abusados. O músico disse que, durante o período em que esteve na agência, entre 2012 e 2016, Johnny Kitagawa terá abusado de entre 100 e 200 menores.
Já esta sexta-feira, Okamoto disse à comunicação social que a pessoa que está mais magoada com a situação é a sua mãe, que "tem que ouvir coisas que me foram feitas", e declarou respeito por Higashiyama, que considera "corajoso por assumir este trabalho que ninguém quer".
Emissoras japonesas pedem desculpa
O documentário da BBC também expôs o silêncio da comunicação social japonesa, que não abordou o tema nem após a morte de Kitagawa. Após a conferência de imprensa da Johnny & Associates, foram as emissoras japonesas a fazer um mea culpa.
Os abusos chegaram a ser noticiados por um tabloide em 1999, levando Kitagawa a processar o jornal, mas as emissoras nacionais optaram por evitar o tema - até depois do Tribunal Superior de Tóquio ver confirmada, pelo Supremo Tribunal do Japão, uma decisão em que praticamente afirma que Kitagawa cometeu agressões sexuais, como admitiu a emissora pública NHK em comunicado.
Nessa decisão, sobre um recurso do tabloide que noticiou as alegações de abusos e tinha sido condenado por difamação, o tribunal reverteu a opinião do tribunal local de Tóquio, restringindo a difamação provada às alegações de dar álcool e tabaco a menores.
"A sensibilização da NHK para esta questão era escassa e nunca demos seguimento a uma reportagem mais aprofundada ou decidimos abordá-la", declarou a emissora, prometendo melhorias.
Outros grandes órgãos de comunicação social japoneses, como a NTV, a TV Asahi e a Fuji TV também emitiram declarações semelhantes, em que prometem mudar a abordagem a este tipo de casos.