O juiz Antonin Scalia morreu na semana passada. Para os americanos, tratou-se de um evento de escala nacional. O New York Times, por exemplo, noticiou o evento com machete a toda a largura da primeira página. E com razão: Scalia não era somente um dos juízes mais influentes no Supremo Tribunal de num dos países mais influentes no mundo: Scalia criou verdadeiramente uma escola de direito constitucional.
De um ponto de vista político, tratou-se também de um evento marcante: num Supremo Tribunal muito dividido, um juiz pode ser a diferença entre os dois pratos da balança, especialmente em decisões que, no sistema americano (de tradição anglo-saxónicas), criam um precedente de grande importância legal.
Os media discutiram o legado de Scalia, mas principalmente continuam discutido o futuro do Supremo, nomeadamente o processo de nomeação de um novo juiz. No meio de todo este ruído mediático, pouco se falou e poucos falaram sobre um aspecto interessante - exemplar, diria mesmo - da vida de Scalia: a sua amizade, ao longo de mais de 30 anos, com a colega Ruth Ginsburg.
De um ponto de vista político e académico, o contraste entre Scalia e Ginsburg não poderia ser maior. Aliás, eram frequentemente apontados como os polos extremos do Supremo. Ele, rigoroso na fidelidade ao espírito dos autores da constituição e conservador em todas as causas sociais, desde o aborto até ao "casamento gay". Ela, mais aberta ao processo construtivo de interpretação da lei e claramente mais progressista no que respeita às causas sociais. No conjunto de decisões que o Supremo decidiu pela margem mínima (5 contra 4), Scalia e Ginsburg raramente se encontraram do mesmo lado (1 em cada 20 casos).
No entanto, o respeito profissional entre os dois era do conhecimento geral e frequente tema de conversa. Aliás, não era segredo nenhum: Scalia frequentemente citava Ginsburg nas suas decisões, e o mesmo fazia Ginsburg com respeito a Scalia. Concordavam em discordar, por assim dizer. Elogiavam o trabalho do outro embora não partilhassem os mesmos princípios. Ginsburg afirmava que discordava da maior parte do que Scalia dizia, mas gostava muito da forma como ele o dizia. Inclusivamente, alguns dizem que Scalia foi influente na escolha de Ginsburg para o Supremo. (Pelo menos, mais do que uma vez sugeriu que ela seria a melhor escolha para Bill Clinton). Uma pessoa que conhecia Scalia e Ginsburg disse-me que Scalia sempre pensava duas vezes antes de discordar de Ginsburg, pois sabia que isso lhe iria dar muito trabalho (no sentido de que as opiniões dela eram sempre bem pensadas e executadas).
Apesar das muitas divergências, sabiam trabalhar como colegas. Numa importante decisão do Supremo Tribunal, em 1996, Scalia foi a única voz discordante. Apesar de "derrotado", teve a delicadeza de apresentar o seu texto à colega antes de esta escrever a decisão da maioria. "Ele estragou-me o fim de semana", recorda Ginsburg, "mas ler o texto dele ajudou-me muito a escrever o meu".
Jantavam juntos com frequência (o marido de Ginsburg era conhecido como bom cozinheiro), e por vezes os Scalia e os Ginsburg passaram férias juntos. A amizade entre os dois era também definida por um gosto comum: a ópera. Aliás, o par Scalia-Ginsburg foi inclusivamente objecto de uma ópera encenada recentemente em Washington: uma ópera cómica, coisa que é fácil considerando a piada que sempre tinham. "Ela é uma senhora simpática e gosta de ópera. Não há nada de que não se possa gostar - excepto, claro está, as opiniões sobre direito", dizia Scalia. "Eu gosto muito dele, mas às vezes apetece-me estrangula-lo", dizia Ginsburg.
"Se não és capaz de discordar dos teus colegas em questões de direito e ao mesmo tempo ser amigos deles... bolas, o melhor é procurar outro trabalho", dizia Scalia (a minha tradução). E Ginsburg afirmava: "Por muito chateada que fiques com as opiniões que escreve, ele é tão charmoso, tem tanta piada, e às vezes é tão chocante ("outrageous"), que não podes evitar dizer 'Ainda bem que ele é meu amigo e colega'".
O segredo deste "par estranho" encontra-se talvez no testemunho de Paul Spera, um neto de Ginsburg: "Nunca os ouvi falar sobre coisas políticas ou ideológicas, pois não valia a pena". Não concordo necessariamente com Spera, mas se essa era a única solução, talvez fosse de facto uma boa solução, pois o resultado foi uma das amizades mais interessantes a que o mundo assistiu. Um bom exemplo para muitos de nós.