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Já nem sei o que diga. Já disse, já repeti, anos a fio, numa luta que parece não ter fim. Sinto que já não me movo pela razão, mas por puro medo. Medo de cair numa armadilha. Uma sociedade de indiferença, de descarte, de ausência de empatia, que, com o pretexto do respeito pela sagrada liberdade, recusa ver na vontade e autonomia do outro a sua incapacidade de viver a compaixão. Uma comunidade em estado de negação, também ela presa ao medo. Ao medo de ter de estender a mão e a sentir fria. Mais fria. Totalmente gelada.
Uma sociedade que se desabituou não de sofrer (porque ninguém quer sofrer), mas de cuidar. Uma sociedade sem tempo para ouvir e ainda menos para dar resposta eficaz às necessidades do outro. Pressurosa de lhe prestar um último cuidado, para que nada lhe pese na consciência, mas só se for o último. Já vivi numa sociedade assim. Não quero um Portugal assim.
Basta ouvir os defensores da eutanásia para reparar como o discurso os trai. De repente, já estão a defender uma lei diferente da sua proposta: ora é o puro suicídio assistido, ora a eutanásia a pedido, muito longe dos casos terminais subjacentes aos projetos. Uma eutanásia por questões de mera velhice e perda de autonomia (a título de preservação de uma pretensa “dignidade” perdida).
Esta contradição nos termos da defesa das propostas resulta, quase sempre, da liberalização total que, efetivamente, defenderiam, a título pessoal, para manterem a consistência argumentativa.
Se o direito a reconhecer é o direito a ser o dono da sua própria vida, enquanto dever de respeito pela autonomia e liberdade individual de quem a pede, os requisitos impostos não fazem sentido. Escapam-lhes os limites de regulação agora impostos que, no entanto, juram a pés juntos não pretender ultrapassar. Tenho por certo que os ultrapassarão. Veremos.
A regulamentação proposta passa pela avaliação por vários médicos (assistente, clínico da especialidade e nalguns casos também de um psiquiatra) e a autorização ou recusa de uma comissão independente. O que prova ainda que a autonomia e a liberdade do doente acabam por chocar com a decisão que, nalguns casos, lhes pode ser negada.
Por isto ou por aquilo ou simplesmente por não cumprirem algum dos requisitos (desde logo o da reafirmação reiterada da livre vontade, que nalguns casos atinge as sete vezes) provam bem como a ameaça de pressões externas não é um mero fantasma de quem está contra a lei, mas uma possibilidade que assusta os seus próprios defensores.
Como as pressões económicas que todos sabemos que podem existir, que todos tememos que venham a existir. Que a maioria teme que possam justificar não o necessário reforço do investimento do Serviço Nacional de Saúde mas, pelo contrário, acabem a legitimar ainda maior desinvestimento.
Uma coisa é propor este tipo de lei num sistema acabado, que funciona na perfeição (cuidados paliativos generalizados e prestados ao domicílio de norte a sul do país), cuidadores encartados e remunerados, em número suficiente - e outra coisa é propô-la num momento em que o setor da saúde está em plena marcha-atrás da quase excelência conseguida ainda há pouco tempo, para a decadência, o “burnout” generalizado dos profissionais, a falta de outros, as esperas de seis horas na urgência de Lamego e mais de três em Beja, seguidas da morte em desamparo dos doentes prioritários em pleno hospital.
Daí o grito de Jerónimo de Sousa (insuspeito de obedecer às pressões da Conferência Episcopal da Igreja Católica ou de qualquer outra das sete confissões religiosas que estão contra!). O líder do PCP diz: não matem. Mas diz mais: deixem que o prolongamento da vida, que foi uma conquista civilizacional, seja também possível “na nossa Pátria”.
Percebe-se a preocupação do operário com a passagem da fábrica diretamente para o fim da linha, sem tempo de fruir da vida que logo que deixa de ser produtiva e se apresenta com limitações deixa de ter valor de mercado e valor social. Triste sorte passar sem transição da trituradora produtivista do capital para o caixote do lixo do capitalismo. Sem tempo para amar, beijar, gozar da ajuda dos filhos, arrastar-se mesmo devagarinho até ao jardim a contemplar os pássaros e a ensinar os netos a jogar petanca ou a fazer fisgas, mesmo se já não se consegue ensinar a subir às árvores.
Os pedidos de eutanásia contemplados na lei parecem ser para poucos (talvez umas dezenas) porque não estão sobre a mesa questões de idade (a lei começa por excluir crianças), consciência livre e informada (sem demências, situações jurídicas de processos de incapacitação, e depressão profunda). Depois enumeram-se as justificações aceites: lesão “definitiva” ou doença “incurável e fatal” (BE) ou situação “de grande sofrimento físico ou psicológico intenso”, situação “clínica grave e irreversível” (PAN) vivida em “sofrimento duradouro e insuportável” (BE e IL), “intolerável ou atroz” (Verdes), sabendo que “a agonia tortuosa é a única expressão de vida que conhecerá até à morte” (idem).
Estamos, assim, muito longe da doença terminal, mas igualmente afastados do direito a dispor da vida de jovens deprimidos com desgostos de amor ou ameaçados com doenças que virão a declarar-se só mais tarde como degenerativas e que se querem antecipar à dor, dementes com declaração prévia de vontade, inconscientes sem possibilidade de reiterar essa vontade na hora da morte, ou dos pedidos por simples “cansaço” de viver, que hoje já são admitidos nos países percursores.
Nesses (Holanda à cabeça), a banalização da morte, fruto da crescente familiarização com milhares de casos anuais, mostra que, aberta a porta, ela não será mais possível de fechar e vai abrindo mais e mais.
Porquê? Por questões sociais que se vão libertando do dever de olhar para o outro como um bem a preservar, e passam a avaliar com naturalidade a vida com critérios de pura “utilidade” ou “inutilidade social”.
Este olhar contamina a forma de cada um se ver no próprio espelho. Se já cá não ando “a fazer nada (útil) para quê continuar”? E daí o medo. Que o direito de dispor da vida acabe transformado no dever de lhe pôr fim, antes que esta constitua um peso demasiado grande para a família e demasiado caro para a sociedade. Défice dixit.
O cisma grisalho é isto. E vai voltar.
Na Holanda, onde se debate agora a distribuição gratuita para maiores de 70 anos da pílula sem dia seguinte, corre uma petição pela preservação da vida dos nossos maçaricos do Montijo. Uma ave simpática ameaçada pela construção de um aeroporto. A história dos maçaricos é real, a pílula sem dia seguinte parece mas não é “fake news”. É mesmo uma proposta de um dos partidos que faz parte da coligação governamental.
Por cá, ainda corre uma petição a favor da vida contra a eutanásia. Precisa de 60 mil assinaturas e já vai em 38 mil (numa semana e pouco). Muitos dos que, como eu, são visceralmente contra a democracia referendária em matérias de direito à vida, no último fim de semana viram-se na contingência de a assinar.
“Parlamentarite” não é parlamentarismo. Imagine-se que os 230 deputados viravam Joacines e diziam, de repente, que estavam ali, legitimamente eleitos pelo povo, respondendo apenas perante a sua consciência. Não augurava nada de bom.
Votamos e mandatamos deputados eleitos por partidos escrutinando não as consciências mas os programas. Entre eles muitos do PSD e PS (juntos bastariam para recusar a lei). Ambos os partidos se esqueceram, ingenuamente, de dizer ao que vinham. Temos pena. Mas agora não venham reclamar o cheque em branco que ninguém lhes deu.
O IVA da eletricidade e o voto favorável ao Orçamento não pode pagar-se assim. É um preço alto, demasiado alto para o histórico excedente. O BE agradece. Se era tema prioritário, fizessem campanha por ele. Se Marcelo for sensível ao grito de Jerónimo e à voz da sociedade, e a maioria em referendo votar favoravelmente a lei, ela não terá mais legitimidade para mim. E se a recusar será, pelo menos, a bofetada de luva branca a quem quis tomar o povo por tolo.
Aqui não há contradição nenhuma. É mesmo puro tacticismo? Claro. E este agendamento? Não é?*Graça Franco, directora de informação informação da Renascença