Um ano após o ataque ao jornal satírico francês “Charlie Hebdo”, a guerra contra o terrorismo passou a ser a nova realidade. Para o comentador Nuno Rogeiro, estamos perante “um grande conflito internacional, com consequências que podem ser devastadoras”.
Em entrevista à Renascença, o jornalista faz o balanço das medidas tomadas para responder à ameaça do autoproclamado Estado Islâmico contra alvos na Europa e no resto do mundo. Há medidas extremas, mas faltam meios e sobra descoordenação na guerra contra o terrorismo.
Estamos a ganhar a guerra ao terrorismo?
O terrorismo deixou de ser uma espécie de ameaça nacional ou regional e passou a ser uma ameaça global. Não há hoje nenhum país que não condene, por exemplo, os actos do dito Estado dito Islâmico ou da Al-Qaeda. Isso é talvez um triunfo, um avanço de civilização. Agora, por detrás da concordância nesta denúncia, há uma série de posições nacionais que, umas vezes por descoordenação, outras vezes por interesses estratégicos diferentes, fazem com que esse combate tenha avanços e recuos.
As medidas tomadas surtiram efeito?
Dez meses depois dos ataques ao “Charlie”, tivemos, novamente, ataques em Paris. Mostrou-se que as medidas que tinham sido anunciadas em Janeiro do ano passado não tinham surtido efeito. As novas medidas – a expulsão das pessoas com dupla nacionalidade e que perderiam a nacionalidade francesa, o controlo mais apertado da internet, a continuação do estado de emergência, etc…. – vieram porque as de Janeiro foram insuficientes.
Aquilo que causou grande revolta entre os franceses foi ter sido mostrado que a descoordenação entre os serviços secretos internos e externos continua a ser muito grande, continua a haver dispersão de informação que vem de serviços estrangeiros e falta de recursos humanos. Os polícias franceses estão cansadíssimos, praticamente já não têm turnos de descanso. Há uma série de problemas que nunca foram verdadeiramente resolvidos e que depois acabam por transformar essas tais medidas extremas que têm alguns perigos.
Por exemplo, uma medida de controlo da internet tem a vantagem de poder tratar como crimes coisas que são, efectivamente, crimes, mas pode também fazer pagar o justo pelo pecador. A internet é um grande mecanismo de comunicação e desenvolvimento que também traduz liberdades civis e que não pode, de todo, ser fechada.
Portugal está preparado para lidar com o problema do terrorismo?
Portugal não é um país que apareça em nenhum dos radares destas organizações. Mesmo quando houve declarações mais extremas da Al-Qaeda e do Daesh [Estado Islâmico], do estabelecimento de um califado universal, falava-se muito mais em Espanha do que em Portugal. Espanha está muito mais exposta, mas não há fronteiras indivisíveis na Europa, sobretudo na Europa de Schengen. Portanto, quem chegar à Alemanha, chega facilmente a Portugal.
A grande questão é, primeiro, saber se tem apoio logístico em Portugal e não me parece que nas grandes cidades haja bairros onde um grupo como aquele que actuou em Paris possa passar despercebido sem ser denunciado. Por outro lado, também não me parece que os alvos que pudessem ser encontrados em Portugal seriam tão rentáveis como noutros países do mundo.
Mas tudo pode acontecer porque o que estamos a ver nestes grupos é que, cada vez mais, há os fenómenos da auto-radicalização. Uma pessoa que até ontem não tinha intenção de matar ninguém, de repente, em dois, três dias, uma semana, através do contacto com um intermediário, acaba por se transformar num militante e isso é dificilmente controlável por alguma polícia ou serviço de informações do mundo.
Concorda com a ideia de que vivemos uma III Guerra Mundial?
É um combate em todos os países do mundo e nesse aspecto é uma guerra. Agora, não é uma guerra com trincheiras, nem com uniformes. É até uma guerra feita de sombras e de trevas, em que o amigo de ontem se revela hoje que não é amigo verdadeiramente. É um grande conflito, mas a expressão “III Guerra” já foi utilizada tantas vezes desde a Guerra Fria, que foi ela própria considerada uma III Guerra Mundial, que não tem grande significado. A verdade é que temos um grande conflito internacional, com consequências que podem ser devastadoras.
Como foi possível o Estado Islâmico controlar partes da Síria e do Iraque?
Há muitas razões. Um vácuo, o facto de muitas Primaveras Árabes terem gerado mais radicalização do que moderação, muitos radicais nas Primaveras Árabes terem decidido fazer a revolução fora dos seus países e terem ido para países como a Síria (um regime repressivo e sanguinário produz, ele próprio, radicais).
Depois, também o problema das muitas armas e recursos que tinham sido dados a grupos ditos moderados da oposição síria, que acabaram por cair nos grupos radicais. Também o facto de a oposição moderada síria ser frágil e estar muito dividida, o que faz com que um grupo organizado, como o dito Estado dito Islâmico, progrida. Também o facto de o Estado Islâmico vir das antigas gerações da Al-Qaeda que estavam, de certa forma, desempregadas e encontraram um novo emprego.
Ainda o facto de o exército iraquiano ter, pura e simplesmente, entrado em colapso e ter-se entregue de armas e bagagens a esta gente, com a cumplicidade de muitos antigos oficiais do exército de Saddam Hussein. Há dezenas de razões que explicam o crescimento deste dito Estado dito Islâmico.
Paralelamente a tudo isto há uma enorme crise de refugiados...
Eu escrevi um livro [“Menos que Humanos”, D. Quixote] sobre isso há pouco tempo, andei um ano a prepará-lo. Esta crise de refugiados não tem, propriamente, a ver com o fenómeno do terrorismo, se bem que as redes de tráfico clandestino para a Europa possam ser infiltradas por vários grupos de marginais e delinquentes, entre eles grupos terroristas. Isso não quer dizer que os refugiados sejam terroristas, pelo contrário.
A principal grande defesa contra esta gente são os próprios refugiados e a sua capacidade de denúncia de elementos falsos dentro de si. A cooperação entre os refugiados e os países europeus na identificação desta gente parece-me fundamental.
Os refugiados têm sido explorados para fins políticos. Já foram comparados a um cavalo de Tróia do terrorismo...
Não é fácil as sociedades organizadas, que já têm problemas graves de desemprego, de choques civilizacionais, de conflitos étnicos, terem conflitos adicionais com pessoas que chegam e que são, para todos os efeitos, estranhos. Basta ver o pânico que se gerou nos últimos dias em Colónia, na Alemanha, depois de vários ataques na estação central de caminhos-de-ferro, infelizmente, muitos deles contra mulheres, feitos por grandes grupos de pessoas que algumas das vítimas dizem que têm uma aparência do Médio Oriente ou do Norte de África. Isso criou já um sentimento muito grande contra nova aceitação de refugiados pela Alemanha, que é o país da Europa que se comprometeu a recebe mais refugiados.
Vamos ter muitos incidentes deste género. A identificação dos refugiados não me parece ser uma perseguição, é pelo contrário uma garantia.
Quem são e do que fogem estes refugiados?
É, essencialmente, um fenómeno da classe média. As grandes massas deserdadas, desapossadas, pobres ou extremamente pobres dos países árabes, não fugiram. Estão lá. Para onde é que eles fogem? Essencialmente para os países limítrofes. Mas os três únicos países que lhes têm dado grande guarida têm sido a Turquia, o Líbano e a Jordânia, o que mostra que estes três países têm suportado desproporcionalmente o peso dos refugiados.
Entre esta gente há refugiados voluntários, pessoas que tomaram a iniciativa de fugir, mas depois também há, o que é um aspecto mais trágico, os chamados traficados, pessoas que são raptadas ou capturadas para servir como escravos entre vários círculos de escravatura na Europa.
É um negócio milionário?
É um negócio bilionário, provavelmente. O problema dos refugiados é apenas um dos problemas das actuais migrações. O problema do tráfico é também muito complicado e dentro das várias escalas de desumanidade é, talvez, o que revela a maior desumanidade de todas.
A Europa reagiu tarde, mas está a conseguir recuperar o tempo perdido?
A Europa tinha três problemas. O primeiro era a coordenação das políticas de imigração e das políticas de assuntos interiores da Europa, que são largamente nacionais. Depois, tinha o problema dos centros de acolhimento, que eram poucos ou pouco adequados. Um terceiro problema: a ligação entre as agências civis, as agências de segurança e as militares era muito pouca. Hoje não é assim.
Esta crise de refugiados foi inesperada ou já havia sinais de que podia surgir?
Não foi inesperada e, como explico no livro "Menos que Humanos", já existia este alerta há pelo menos dois ou três anos. O problema é que os governos europeus nunca olharam isto como uma grande prioridade. Sabiam que a tempestade ia aparecer, mas reagiram demasiado tarde. Não por falta de informação ou de informações, mas por falta de vontade política.
E continua a haver divisões na Europa?
A falta de união na política europeia deve-se também ao facto de os cidadãos da Europa estarem, muitas vezes, em desacordo quanto ao que fazer e, como a Europa não é uma tirania, tem de seguir aquilo que a sua opinião pública quer. E a opinião pública, neste momento, está extremamente confusa.
Fala-se muito do muro da Hungria, da Croácia e da Eslovénia, mas ninguém diz que um dos primeiros muros a ser construída foi o muro construído pela Grécia face aos imigrantes que vinham da Turquia. Todos os países, de certa forma, quando pressionados, têm essa tentativa de resolver as coisas da maneira mais fácil: onde a fronteira é difícil constrói-se uma barreira física.
Como é que a História vai julgar a Europa nesta crise dos refugiados?
Apesar de tudo, a Europa, comparada com os Estados Unidos, a Rússia, a China e os países do Médio Oriente, tem sido a zona do mundo que fez mais pelos refugiados.