Tem uma voz calma, fala de forma pausada. Itamar Vieira Júnior, visita pela primeira vez Portugal, o país de onde há 105 anos saíram, de Braga, os seus tetravós. Regressa às origens trazendo na mão o Prémio Leya, que venceu em 2018 com o seu romance “Torto Arado”.
O livro que tem como pano de fundo a escravatura e a vida de pobreza dos agricultores brasileiros leva a conversa até à atualidade política do Brasil. O autor bahiano denuncia que existe “um projeto de destruição de direitos conquistados” com a nova Presidência de Bolsonaro, “com forte presença militar”.
O autor dedica o livro ao seu pai que já não pode ver a obra impressa.
“Torto Arado” é um livro marcadamente rural. Dá a conhecer um país do passado, mas onde há marcas que persistem até hoje.
O Brasil é um país que passou por um processo de urbanização, como todo o mundo nos últimos anos, mas existem populações que vivem e permanecem no campo brasileiro apesar do avanço do agronegócio e dos grandes ruralistas que têm concentrado cada vez mais terra e expulsado essas populações do campo.
Há ainda muitas que resistem com o seu modo de vida e cultura. É um país muito diverso e diferente no interior. Temos populações de indígenas e muitas etnias. O Brasil já teve 305 etnias indígenas. Temos um universo muito diverso e rico no interior. O facto de ser desconhecido, para um escritor pode ser um desafio e eu assumi esse desafio de fazer as pessoas conhecerem um pouco o que é o nosso país por dentro.
Como surgiu a ideia para escrever “Torto Arado”, agora editado pela Leya em Portugal?
Descobrir a literatura regionalista brasileira. Os modernistas causaram-me grande impacto. Era muito jovem, tinha 16 anos, comecei a escrever essa história nessa época. Basicamente, o núcleo era esse, duas irmãs, o pai e a terra. Os nomes, as situações foram modificando-se. Nessa primeira versão só escrevi 80 páginas e ainda bem que se perderam! Pude, anos depois, retomar a história e reescrevê-la, com esse resultado
Quem são Belonísia e Bibiana, as irmãs protagonistas deste romance e o seu pai?
Zeca Chapéu Grande é o pai, é um agricultor humilde, analfabeto – algo não muito distante da realidade de Portugal há algum tempo. Ele vive peregrinando de um lugar para o outro para encontrar terra para plantar e sobreviver. Quando é acolhido por Água Negra ele é submetido a uma vida de servidão. Ele tem vários filhos. A Bibiana e a Belonísia, as protagonistas, são filhas dele e um acidente no começo do livro vai acabar por uni-las. Uma delas perde a voz e a outra passa a comunicar o que a que não consegue falar precisa dizer.
Quando recebeu a notícia do Prémio Leya recordo que disse à Renascença que estava com o seu pai no hospital. Vejo que lhe dedicou o livro.
Sim, esse livro foi dedicado ao meu pai porque durante esse período do Prémio Leya eu estive com ele no hospital. Ele ficou muito feliz e orgulhoso com a distinção, mas veio depois a falecer. Não está aqui nesse momento em que o livro é lido e acolhido pelas pessoas. Deixei por isso, esta pequena homenagem, porque muitas destas histórias contadas em “Torto Arado” têm a participação dele.
Podemos fazer um paralelismo entre a realidade de que fala “Torto Arado” e o Brasil de hoje?
Parece que pouca coisa mudou do Brasil do passado para o Brasil de hoje. O governo eleito deixou muito claro que não tem compromisso com estas comunidades. Os eleitores não foram enganados. Eles não foram desonestos. Deixaram muito claro desde a eleição que não haveria regularização de terras, de um centímetro de terras, para os indígenas.
Então, eu observo com muita preocupação o que está a acontecer no Brasil de hoje. Temo por essas populações, pelas pessoas em geral, porque existe um projeto de destruição de direitos conquistado, a duras penas, ao longo da nossa jovem democracia. É um governo que tem forte presença militar, para nós isso não é uma coisa boa. E parece que esse foi o caminho que os eleitores optaram, por uma intervenção branca.
Temos uma memória da ditadura militar e foi um período sombrio e de retrocesso para o país. Para nós, não é com otimismo que vemos de novos os militares no poder.
Está pela primeira vez no Festival Correntes d’Escritas na Póvoa de Varzim e chega carregando o Prémio Leya. Como se sente aqui com essa marca de um prémio no livro “Torto Arado”?
Para mim tem um sentido muito especial. Os meus tetravós paternos saíram de Braga há quase 105 anos. Eram pessoas humildes, simples e analfabetas. Foram viver para a Bahia e nunca mais regressaram a Portugal. Eu não os conheci, mas minha mãe conhece-os. Volto agora com esse prémio, e com esse interesse no livro. Para mim tem um significado muito especial.