Mais de 200 católicos, incluindo várias figuras públicas, assinam uma carta em que pedem aos bispos portugueses que apoiem uma investigação independente à questão dos abusos sexuais em ambiente eclesial, sob pena de esta vir a ser ordenada por decisão política, danificando ainda mais a reputação da Igreja neste campo.
A carta surge no mesmo dia em que o presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, anunciou a criação de uma comissão nacional para coordenar o trabalho das várias comissões diocesanas de proteção de menores que já existem.
Esta comissão terá como objetivo definir critérios e procedimentos comuns às 21 comissões diocesanas, bem como prestar-lhes apoio, nomeadamente na gestão da informação. A criação de um manual de procedimentos comum a todas as dioceses e organismos da Igreja perante denúncias de abuso sexual será um dos objetivos do grupo coordenador a ser criado na Assembleia Plenária do episcopado que começou esta segunda-feira e se prolonga até à próxima quinta-feira.
Os signatários da carta aos bispos manifestam o seu ceticismo quanto ao baixo número de casos de abusos reportados em Portugal, pouco mais de uma dezena ao longo da última década, dizendo não ter conhecimento de “razões sociológicas ou de outra natureza possam existir” que permitam que a experiência na Igreja portuguesa tenha sido diferente da de outros países como França, Polónia, Alemanha ou Estados Unidos, em que investigações desta natureza revelaram um problema sistémico de abusos e de encobrimento.
“Está hoje consolidada e consensualizada a consciência de que este tipo de atuação, observado na Igreja Católica em todas as latitudes e ambientes culturais, é sistémico e diretamente relacionado com o exercício do poder no seu interior e, noutro plano, com as manobras de encobrimento passivo ou ativo”, lê-se.
Os autores da cata dizem temer que a recusa da Conferência Episcopal em apoiar uma comissão independente seja vista pela sociedade como uma tentativa de esconder a verdade. “Só a verdade nos permite um relacionamento livre e transparente com aqueles a quem a nossa fé nos convida a servir. Por isso, acreditamos que só uma investigação profunda e independente pode confirmar essa eventual excecionalidade da Igreja em Portugal. Se essa iniciativa não for tomada, receamos que a inação da CEP seja vista pela sociedade portuguesa como encobrimento”.
“Apelamos veementemente à CEP que se alinhe com as orientações do Papa Francisco e tome, com caráter de urgência, a decisão de lançar uma investigação nacional rigorosa, abrangente e verdadeiramente independente, com o arco temporal de 50 anos, a cargo de uma comissão de peritos constituída exclusivamente por leigos católicos, por não crentes, por profissionais das ciências sociais e da justiça, cuja autonomia e independência sejam absolutamente inquestionáveis, ainda que possa, eventualmente, ser assessorada por algum elemento do clero”, pedem, acrescentando que esta investigação não deve estar a cargo de uma eventual comissão nacional para a proteção de menores que se calcula estar a ser preparada pela CEP para coordenar o trabalho levado a cabo pelas diferentes comissões diocesanas que já existem.
Dizem os signatários que caso a Igreja não atue rapidamente é possível que o Estado imponha uma investigação. “"É nossa fundamentada convicção que se a CEP não tomar, de imediato, esta iniciativa, nos termos referidos, a investigação acabará por ter lugar por decisão política, o que significará, com toda a certeza, um agravamento de custos reputacionais para a Igreja, mais uma tristeza que todos nós queremos firmemente evitar”.
A carta é assinada por 241 figuras, de diferentes espetros e tendências dentro da Igreja Católica, incluindo o ex-presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio da Fonseca, o historiador e professor universitário Mendo de Castro Henriques e o jurista André Folque, que pertence à Comissão de Liberdade Religiosa. Outras figuras públicas como o político José Manuel Pureza, a escritora Alice Vieira ou o jornalista Jorge Wemens também se juntam a uma lista recheada de académicos, incluindo o copta católico Adel Sidarus, que foi professor durante vários anos na Universidade de Évora, e Teresa Toldy.
Esta segunda-feira, em Fátima, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) assegurou que a Igreja portuguesa tudo fará para "proteger as vítimas, apurar a verdade histórica" e impedir situações de abuso sexual no seio da instituição.
Na abertura da 201.ª Assembleia Plenária da CEP, que tem a questão dos abusos no seio da Igreja como tema que suscita as maiores atenções, sendo dada como certa a criação de um grupo coordenador nacional para tratar do tema, o também bispo de Setúbal, José Ornelas, disse que o tema é "desafiador para toda a sociedade" e que a Igreja o toma "como prioritário".
"É um dos assuntos desta Assembleia, no propósito de verificar os processos em curso, articular melhor as instâncias diocesanas e a coordenação nacional, de modo a oferecer oportunidades seguras e fiáveis no acolhimento de denúncias e acompanhamento às vítimas de abusos, na clarificação de processos e, sobretudo, na formação de pessoas", disse o presidente da Conferência Episcopal, deixando a garantia: "Faremos tudo para proteger as vítimas, apurar a verdade histórica e impedir estas situações dramáticas que destroem pessoas e contradizem o ser e a missão da Igreja".
José Ornelas aproveitou ainda o momento para citar o Papa Francisco, segundo o qual "a proteção dos menores é, cada vez mais, concretamente, uma prioridade ordinária na ação educativa da Igreja, é promoção de um serviço aberto, fiável e autorizado, em firme contraste com qualquer forma de dominação, desfiguração da intimidade e silêncio cúmplice".
[Notícia atualizada às 07h32 de terça-feira]