​Ninguém sabe o que fará a administração Trump
18-01-2017 - 18:25
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

A dois dias de tomar posse, o futuro Presidente não tem um programa de governo. Os seus “ministros” discordam das medidas mais controversas do magnata. Paira a incerteza total sobre o que fará a nova administração.

Faltam apenas dois dias para o render da guarda na Casa Branca e duas dúvidas essenciais pairam sobre o futuro da América e do mundo.

A primeira consiste em saber o que fará a nova administração nos primeiros tempos de governação. A segunda consiste em saber se Donald Trump vai, finalmente, a partir de sexta-feira, assumir um comportamento e um discurso compatíveis com o cargo de Presidente dos Estados Unidos da América.

O futuro inquilino da Casa Branca já habituou toda a gente a um grau de imprevisibilidade ímpar na história moderna americana. Mas esperava-se que, após ter sido eleito e sobretudo com a aproximação do momento em que vai assumir a Presidência, o seu comportamento se tornasse mais responsável. O que significaria, no mínimo, maior contenção verbal, menos reacções emocionais e maior consistência nas opiniões expressas.

Incertezas

Nada disso aconteceu até hoje. A tal ponto a imprevisibilidade de Trump se tornou proverbial, que o próprio FMI já a leva em linha de conta nas suas análises económicas. Na segunda-feira, o Fundo divulgou as perspectivas económicas para este ano e um dos pontos que salientou foi justamente “a incerteza em torno das opções políticas da futura administração americana”.

O FMI refere-se ao espectro do proteccionismo que ameaça as taxas de crescimento económico previstas para 2017. No mesmo dia do seu relatório foi divulgada uma entrevista de Trump ao jornal alemão “Bild” em que o Presidente eleito promete levantar barreiras alfandegárias de 35% aos fabricantes de automóveis alemães que quiserem vender nos EUA veículos produzidos no México.

E este foi só o último capítulo de um conjunto de afirmações do mesmo teor que apontam para uma política proteccionista, alegadamente para defender a indústria tradicional norte-americana, que passará ainda pela denúncia de tratados de comércio livre internacional, como o que está celebrado com o México e o Canadá.

Mas as incertezas agravaram-se na semana passada com as audições no Senado de alguns dos nomeados para o governo. Entre as personalidades apontadas para os cargos mais relevantes da administração foram raras aquelas cujas opiniões coincidiram com as de Donald Trump em assuntos sensíveis para o país e para o mundo.

É sabido que Trump não prima pela coerência. Mas mesmo assim foi mantendo algumas posições bastante controversas em questões como a NATO e os aliados ocidentais, a proliferação nuclear, o acordo com o Irão, as mudanças climáticas, o uso da tortura, a imigração, a construção do muro na fronteira sul, entre outras.

São posições que moldaram a sua candidatura e promessas que foram reafirmadas já após a eleição e que é suposto serem a trave mestra do seu programa de governo. Mas muitos daqueles que foram depor ao Senado para serem aprovados como membros da nova administração não parecem sintonizados com tais promessas.

Vejamos alguns exemplos.

Trump desvalorizou em várias entrevistas a ocupação da Crimeia pela Rússia, admitiu mesmo que os EUA poderão reconhecer a anexação daquela província ucraniana por Moscovo e parece disposto a levantar as sanções ao Kremlin.

Rex Tillerson, ex-presidente executivo da ExxonMobil, que Trump indicou para secretário de Estado, classificou a ocupação da Crimeia como “ilegal” e disse que os EUA não a reconhecerão. Tillerson considerou eficazes as sanções contra Moscovo.

Trump disse repetidamente que o aquecimento global era um embuste inventado pela China para prejudicar a competitividade da economia americana. E sugeriu que os EUA poderão denunciar o acordo de Paris sobre o clima, não cumprindo as suas metas.

Rex Tillerson defende que os riscos das mudanças climáticas existem e as consequências são suficientemente sérias para justificarem medidas como um imposto sobre as emissões de carbono para a atmosfera. Não as considera, contudo, uma prioridade nem uma ameaça iminente à segurança nacional.

A “obsoleta” NATO e o “desastre” acordo com o Irão

Trump classificou a NATO como “obsoleta” e insinuou que, em caso de conflito, poderia não defender os países aliados que não pagassem a sua parte para o orçamento da Aliança.

James Mattis, o general reformado indicado para secretário da Defesa, reafirmou a importância da NATO, dizendo que “as nações que têm aliados fortes prosperam, enquanto as outras definham”. E acusou Putin de estar a tentar quebrar a Aliança Atlântica. “Essa é a realidade com que lidamos hoje e é importante reconhecê-lo”, sublinhou, considerando a Rússia uma das maiores ameaças aos EUA. “Temos uma longa lista de vezes em que tentamos envolver-nos positivamente com a Rússia e uma lista curta de sucessos nesse aspecto”, acrescentou.

Trump apelidou o acordo com o Irão sobre o nuclear de “desastre” e disse que o denunciaria se Teerão não satisfizesse novas condições.

James Mattis afirmou que Washington tem de “honrar” um acordo “imperfeito” porque quando os EUA dão a sua palavra têm de manter a promessa e trabalhar com os aliados.

Um Presidente a favor da tortura

Trump defendeu que os EUA devem usar métodos de tortura, nomeadamente a simulação de afogamento, com presos suspeitos de terrorismo para obter informações. “A tortura funciona”, garantiu. E prometeu retomá-la “imediatamente” e até adoptar métodos “muito piores”.

Mike Pompeo, indicado para director da CIA, garantiu que se recusaria a fazê-lo. “Não, absolutamente”, afirmou, mesmo que fosse ordenado pelo Presidente, porque não actuaria contra a lei. “Não imagino o Presidente eleito a pedir-me tal coisa”, frisou.

John Kelly, um general reformado indicado para o Ministério da Segurança Interna, também foi claro quanto à tortura. “Não devemos ultrapassar a linha que nós, enquanto americanos, esperamos que seja seguida em termos de técnicas de interrogatório”.

O polémico muro

Trump defendeu desde o início da campanha a necessidade de construir um muro na fronteira com o México para parar a imigração.

John Kelly desvalorizou a proposta, dizendo que “uma barreira física só por si não resolverá o problema”. A verdadeira solução para a imigração ilegal é melhorar as condições de vida na América Central e do Sul, diagnosticou. “A maioria dos imigrantes não quer vir e deixar a casa e a família, mas lá eles não têm quaisquer oportunidades”.

Trump prometeu acabar de imediato com um programa da administração Obama que impede a deportação de menores já nascidos nos EUA de pais ilegais.

John Kelly evitou confirmar tal medida, dizendo que a política de imigração ainda está em processo de definição completa no interior da futura administração e que ele próprio não tinha sido envolvido no debate.

Trump não quer clones

Todas estas contradições entre o Presidente eleito e os seus membros do governo causaram perplexidade entre os senadores e na opinião pública. O porta-voz de Trump apressou-se a esclarecer que os escolhidos o tinham sido pelas suas qualidades intrínsecas e não para serem clones do presidente. E que em caso de discordâncias pontuais prevalecerá a posição de Trump.

Os casos citados, contudo, não podem considerar-se discordâncias pontuais, mas divergências de fundo em relação a opções políticas proclamadas aos quatro ventos durante a campanha pelo próprio candidato vencedor.

E se ninguém governa da mesma forma como fez campanha, naturalmente, importa saber se a nova administração defenderá ou não os aliados da NATO em quaisquer circunstâncias, paguem ou não a sua quota para o orçamento; se reconhecerá ou não a anexação da Crimeia; se levantará ou não as sanções à Rússia; se denunciará ou não o acordo nuclear com o Irão; se cumprirá ou não o acordo de Paris sobre alterações climáticas; se usará ou não tortura nos suspeitos de terrorismo; se construirá ou não o muro na fronteira com o México; se deportará ou não milhões de imigrantes ilegais, etc..

São opções de fundo para as quais ninguém tem resposta neste momento e que fundamentam a imprevisibilidade com que a futura administração americana está a ser recebida em todo o mundo. E a que se podem acrescentar outras, no campo económico, e cujas ondas sísmicas se podem fazer sentir mais rapidamente, como uma eventual guerra comercial com a China, com o México e com a Europa, e o desencadear de medidas proteccionistas que poderão conduzir a uma recessão a prazo.

Pragmatismo ou agenda ideológica

As posições tomadas pelos futuros ministros de Trump no Senado são mais realistas e sensatas do que as promessas do candidato eleito, o que poderá ter uma de duas consequências: ou o Presidente se deixa convencer pela sua razoabilidade e pragmatismo, abandonando algumas das promessas mais radicais que fez; ou os ministros vêem o seu realismo ultrapassado por uma agenda ideológica extrema e acabarão por sentir que estão a mais no governo.

A crer no que disseram dois conselheiros muito próximos de Trump, talvez a primeira hipótese seja a mais plausível. As palavras do futuro Presidente não devem ser tidas em muita conta, devemos sim prestar atenção ao que “está no seu coração”, explicou Kellyanne Conway, a assessora principal.

Um conselho que já tinha sido dado por um outro assessor logo após as eleições. Voltando-se para os média, Corey Lewandowski exclamou: “Vocês tomaram tudo que Trump disse tão literalmente!”.

Talvez a solução resida mesmo em ignorar as palavras de Trump e aguardar serenamente pelas acções da sua administração.