O filho da madrasta acusada de matar a enteada em Peniche, em maio de 2020, confirmou a versão da mãe, num testemunho gravado para memória futura e que foi ouvido esta quarta-feira na sala de audiências.
O menor relatou que acordou com o "barulho de estalos", com o pai de Valentina a bater na menina. “Foram uns dez estalos. Dizia-lhe que ela só sabia fazer maldades e pensar em porcarias.”
Do seu quarto averiguou que o arguido estava a bater na criança e que a mãe, também arguida, pedia para que parasse, tal como a vítima. “Ele dizia: a filha é minha, faço o que quiser. A minha mãe quis chamar ajuda e ele não deixou. Disse que ela ficaria sem os filhos”, contou.
A criança revelou ainda que o padrasto levou Valentina para a casa de banho, onde lhe mandou com água a ferver. “A Valentina só pedia para parar e ele dizia que não queria saber. Ela dizia que a água estava muito quente e ele batia-lhe", referiu ainda.
Valentina caiu e pouco depois, a testemunha ouviu a mãe a perguntar à criança se estava bem e ninguém respondeu. “A minha mãe perguntou se ele não queria que ela chamasse o INEM, mas o Sandro [pai de Valentina] não deixou. Depois da pancada, a Valentina não disse mais nada. O Sandro levou a criança para a cozinha para apanhar ar”.
Segundo contou, o casal colocou a criança no sofá e tapou-a com um cobertor. “A minha mãe disse-me para não contar a ninguém, caso contrário ficaria sem ela e sem as minhas irmãs”, reforçou.
O menino confirmou que os arguidos se ausentaram de casa para ir comprar leite para a irmã mais pequena e foi quando ele viu a Valentina a “espumar-se da boca”.
Telefonou ao padrasto a avisar e “chegaram em cinco minutos”.
“O Sandro estava muito inquieto, não sabia o que fazer. A minha mãe olhava para mim chorava e dava-me abraços. Depois o Sandro disse que tinham de esconder o corpo.”
O rapaz disse ainda que viu nódoas negras nas pernas da criança e uma vermelhidão, “que parecia queimado”.
O testemunho da criança não terminou esta quarta-feira, tendo em conta a sua extensão. As suas declarações vão continuar a ser ouvidas na próxima sessão.
No final do julgamento desta quarta-feira, Roberto Rosendo, advogado do pai da criança, confirmou que o depoimento da criança vai contra as declarações do seu constituinte, referindo que “altera os factos no sentido da execução do crime”.
Confrontado com o facto de o arguido ter contado hoje em tribunal uma versão diferente da apresentada em sede de inquérito, onde assumiu ter agredido a filha, Roberto Rosendo disse não saber “por que se contradisse”.
“Ele fez isso no inquérito e não deu certo. Agora fez de novo, inclusive, adverti-o que se tivesse de o fazer teria de fazê-lo com cabeça tronco e membros”, referiu.
O julgamento prossegue no dia 24 de março, no auditório municipal da Batalha, que terá mais condições para receber a presença de um maior um número de jornalistas.
Devido às restrições impostas pela pandemia da covid-19, o tamanho da sala de audiências onde hoje decorreu o julgamento teve a presença dos jornalistas limitada, deixando alguns profissionais da comunicação social sem poder assistir à sessão.
O Tribunal de Leiria começou hoje a julgar o pai e a madrasta acusados de matar Valentina, nove anos, em maio de 2020, em Peniche, e apresentaram versões contraditórias dos factos que constam na acusação.
Os arguidos estão acusados pelo Ministério Público de Leiria dos crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, em coautoria.
Segundo o despacho de acusação a que a Lusa teve acesso, o casal responde também pelo crime de abuso e simulação de sinais de perigo, enquanto o pai da criança de nove anos está ainda acusado de um crime de violência doméstica.
De acordo com a acusação, no dia 1 de maio, o progenitor, de 33 anos, natural de Caldas das Rainha, confrontou a filha, Valentina, com a “circunstância de ter chegado ao seu conhecimento que a mesma tinha mantido contactos de cariz sexual com colegas da escola”.
Na presença da companheira, de 39 anos e natural de Peniche, ameaçou Valentina com uma colher de pau, que depois terá usado para lhe bater.
Já inanimada, a criança permaneceu deitada no sofá, sem que os arguidos pedissem socorro, adianta o Ministério Público (MP), explicando que o filho mais velho da arguida apercebeu-se da situação, mas foi mandado para o quarto.
O casal escondeu o corpo da Valentina numa zona florestal, na serra d’El Rei (concelho de Peniche), e combinou, no dia seguinte, alertar as autoridades para o “falso desaparecimento” da criança.
Para o MP, pai e madrasta deixaram Valentina “a agonizar, na presença dos outros menores, indiferentes ao sofrimento intenso da mesma”, não havendo dúvidas de que a madrasta colaborou na atuação do pai sem promover o socorro à menor ou impedindo as agressões.