O presidente do Observatório da Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), Jorge Bacelar Gouveia, entende que tornar a criminalidade juvenil como prioritária na Lei de Política Criminal como positiva, mas alerta que este é um instrumento inócuo no que se refere ao combate deste fenómeno no terreno.
“Não deixo de assinalar, a escassa utilidade deste tipo de lei, quando os meios dados ao Ministério Público e às polícias são insuficientes [...] Não é por se dizer que há prioridade de um crime em relação aos outro que os meios se multiplicam, não há um efeito mágico só por dizer que há crimes de investigação prioritária”, avança à Renascença Jorge Bacelar Gouveia. “Penso que a utilidade social e jurídica da lei é muito reduzida”, acrescenta.
O Público notícia esta terça-feira que a violência juvenil vai passar a ser considerada, a partir da próxima sexta-feira, uma prioridade da política criminal essencialmente ao nível da prevenção. Isso mesmo determina uma lei publicada na segunda-feira em Diário da República, que estabelece o rol de crimes considerados prioritários, tanto ao nível da prevenção como da investigação criminal, entre 2023 e 2025.
A prova da pouca eficácia e utilidade desta lei é que o atual articulado entrou com um ano de atraso em vigor e durante este ano os órgãos de polícia criminal continuaram a fazer o seu trabalho.
“Esta lei foi aprovada agora, há poucos dias, e publicada ontem. Mas não havia nenhuma lei no último ano e tal. Isso é um pouco estranho e leva a um outro assunto, que é de facto a utilidade deste tipo de lei criminal. A utilidade teórica é boa, que é dizer que os crimes podem ser investigados e prevenidos de uma forma diferenciada, conforme a sua gravidade. Mas, na prática, o Ministério Público e as polícias não têm meios suficientes”, explica Bacelar Gouveia.
Lei há um ano caducada
A anterior lei, que definia as orientações da política criminal entre 2020 e 2022, está caducada desde final do ano passado. Uma nova proposta deveria ter entrado no Parlamento até 15 de abril do ano passado, mas o Governo acabou por apresentá-la com mais de um ano de atraso.
Bacelar Gouveia afirma que, durante o ano em que não houve lei aprovada, “as coisas continuaram exatamente na mesma”, porque as polícias “continuaram a aplicar ou a lei anterior ou nenhuma lei”. Isto porque, reitera o responsável, “no fundo a lei não é necessária”.
O presidente do OSCOT tem dificuldade em perceber “a lógica de estar a priorizar investigações quando os meios são insuficientes”, ainda por cima com o risco de levar à prescrição dos outros crimes, que porventura não sejam considerados como “de investigação prioritária”.
“Talvez fosse útil num mundo ideal, ou na Alemanha, em que se podem priorizar investigações porque há meios.”
Não há crimes de primeira e crimes de segunda
Na própria conceção da lei, Bacelar Gouveia diz que há predicados que a tornam menos eficaz. Se, por um lado, esta diz que “certos crimes devem ser prevenidos de uma forma mais forte” e “investigados com maior celeridade e antecipação a outros crimes”, na prática a lei salvaguarda que isso “não pode comprometer outros crimes que não são de investigação prioritária, mas para os quais haja, por exemplo, o risco de prescrição”.
Por outras palavras, como os meios com que os órgãos de polícia criminal estão dotados são escassos, “nós não podemos escolher crimes para investigar hoje e deixar outros para amanhã”, explica.
O especialista dá um exemplo, pondo em confronto crimes com molduras penais diferentes: o homicídio e as ofensas corporais simples. Defende que não é pela sua gravidade que um pode ser investigado logo que acontece e o outro só muito tempo depois.
“Qualquer pessoa que tenha seja vítima de um crime tem direito a que o Estado investigue quem foi o seu agressor”, sublinha.
Um sinal político
Por esse motivo, Bacelar Gouveia vê esta lei mais como política do que técnica. “É um sinal para a comunidade de que no universo, no quintal dos crimes do Código Penal, há crimes que preocupam mais do ponto de vista da política de segurança e da política de justiça”, sinaliza.
Apesar de tudo isto, o presidente do OSCOT refere “uma boa medida” do Governo para que este tipo de crime seja prevenido de forma especial.
“Esta notícia é boa, porque o Estado reconhece a necessidade de prevenir de uma forma prioritária o acontecimento e a sua verificação. Mas também é uma má notícia, porque na verdade isto acontece porque tem vindo a aumentar a violência juvenil”, assinala.
Entre as 1.687 ocorrências registadas no ano passado, a delinquência juvenil aumentou 51% face a 2021 e 7,6% relativamente a 2019, o valor mais alto dos últimos sete anos.
Estes números dizem respeito a factos qualificados como crimes, mas cometidos por jovens entre os 12 e os 16 anos, idade a partir da qual se pode ser responsabilizado por um ilícito criminal.
O Governo anunciou a criação de uma comissão que está a estudar este fenómeno.
Causas do crescimento
Segundo o líder do OSCOT, para o recrudescimento do fenómeno a causa imediata “foi o fim da pandemia”.
“O facto de ter havido o ‘lockdown’, a contenção das pessoas em casa e a diminuição severa das atividades económicas e sociais, houve uma reocupação do espaço de atividade noturna junto a estabelecimentos de diversão. Tudo isso associado ao tráfico de droga e, portanto, a crimes também associados, como as rixas.”
O especialista ressalta ainda “a criação de gangues de juvenis que se pretendem afirmar através de uma cultura identitária de contestação em relação ao meio envolvente, em relação à visão que nós temos da sociedade e que utilizam vários tipos de simbologia musical como o drill [estilo de música]”.
A isto soma-se, segundo Bacelar Gouveia, a configuração urbanística, muitas vezes também “propícia à guetização”.
“Não deve ser só um trabalho de repressão da comunidade, mas também um trabalho de prevenção e, no fundo, de acolhimento de todas as comunidades, com base num policiamento de proximidade.”