António Guterres entrou esta terça-feira na sede da ONU para começar a trabalhar como secretário-geral da organização com uma mensagem “urbi et orbi”: baixar as expectativas que rodeiam o seu mandato.
Recebido pelo presidente da Assembleia Geral e por algumas dezenas de funcionários, Guterres disse aquilo que ainda não tinha dito ao longo de todo o processo de eleição nem após a eleição – que “não há milagres” e que “tem a certeza que não é milagreiro”.
A mensagem destinava-se antes de mais à “cidade”, isto é, à própria ONU que agora encabeça. A forma como foi eleito, no processo mais transparente de sempre, em que revelou as suas qualificações para o cargo, gerou inúmeras expectativas entre o aparelho da organização, que nele deposita esperanças em resolver inúmeras questões que têm estado pendentes ao longo dos anos e em tornar a intervenção da ONU mais efectiva pelo mundo fora.
Para estes, Guterres alertou que não é o salvador que acaba de chegar. O que é preciso é trabalhar em equipa e ganhar o direito de servir os valores da ONU, que são os valores que unem a humanidade. Reconhecendo falhas, erros, ineficiências e combatendo a burocracia. Por isso, Guterres considerou estes tempos “desafiantes” em que não bastará fazer aquilo que está certo, mas sim ganhar o direito a fazer aquilo que está certo. Algo que “claramente precisamos de fazer todos juntos”.
Mas na “cidade”, Nova Iorque no caso, estava também o destinatário da mensagem principal de Guterres: o futuro Presidente americano Donald Trump. Atente-se nesta frase: "Este é o momento em que temos de afirmar o valor do multilateralismo. Este é o momento em que temos de reconhecer que apenas soluções globais podem resolver problemas globais e que a ONU é a pedra basilar dessa abordagem multilateral”.
Nada como garantido
E exemplificou com o crescimento demográfico e o aquecimento global como dois problemas que se tornaram globais e que não podem ser resolvidos país a país. No entanto, alertou, “estes sentimentos não são partilhados por muitas pessoas no mundo” e “não se deve dar nada como garantido”.
De facto, no momento em que inicia as funções de secretário-geral da ONU se há algo que Guterres não pode dar como garantido é uma visão multilateralista da futura administração americana. Bem pelo contrário, todas as indicações que Trump foi dando durante a campanha eleitoral apontam para uma política externa unilateralista, porventura isolacionista, em que o menosprezo pela ONU poderá vir a ter um papel relevante.
Se essa atitude foi sendo clara na campanha, tornou-se ainda mais clara quando, no Natal, a administração Obama se absteve numa resolução do Conselho de Segurança que condenava mais uma vez os colonatos de Israel na Cisjordânia. As críticas de muitos conservadores incidiram não só na abstenção da administração Obama, que contrariou o habitual veto americano nestas resoluções condenatórias de Israel, mas também no papel da ONU para a política externa dos EUA.
Senadores republicanos como Lindsey Graham, Ted Cruz e Tom Cotton começaram a trabalhar em formas de “punir” as Nações Unidas por assumir aquilo que consideram uma sistemática política anti-Israel e, segundo Graham, a “única resposta que temos é o poder da carteira”.
Suspender o pagamento da quota dos EUA à ONU, que representa 22% do orçamento da organização, é uma das hipóteses aventadas.
Ideia radical e de difícil concretização já que os EUA estão legalmente vinculados a resoluções do Congresso e ao compromisso internacional de cada país em contribuir com uma verba correspondente ao seu Produto Interno Bruto.
Menos radical e mais concretizável será o corte a financiamentos de operações pontuais da ONU, como missões de paz ou de ajuda à construção de estados, ou mesmo a agências como a UNESCO, por exemplo, que já foi alvo de suspensão de quotas por parte das administrações Reagan e W. Bush em épocas diferentes e por razões diferentes.
“Desconstruir” a ONU
Há muitos anos que há no seio do Partido Republicano uma corrente de unilateralistas que advogam o esvaziamento (ou a dissolução) da ONU por alegadamente não defender os interesses nem os valores americanos.
Essa corrente foi particularmente ruidosa no pós 11 de Setembro, quando os chamados neoconservadores viram na ONU um obstáculo à intervenção militar no Iraque e à política externa americana em geral. Em vez daquele fórum de discussão mundial, advogavam que os EUA deveriam construir coligações com países que partilhassem os seus pontos de vista e intervir no mundo sem quaisquer constrangimentos.
Com nuances, essa corrente anti-ONU mantém-se no seio do movimento conservador americano e vê agora, com a ascensão de Trump à Casa Branca, uma oportunidade de ouro para fazer valer os seus pontos de vista.
A resolução contra Israel foi o pretexto ideal para avançar, sendo que neste caso poderá até obter apoio de alguns membros do Partido Democrático, apoiantes históricos de Israel.
Não se trata apenas de fazer reverter a resolução sobre os colonatos, mas de lançar uma ofensiva que ponha em causa a “utilidade” da ONU para os EUA. No próprio dia em que a resolução foi aprovada, Donald Trump escreveu no tweet: “Em relação à ONU, as coisas vão ser diferentes depois de 20 de Janeiro”, data da sua tomada de posse.
A questão é: quão diferentes? Para alguns republicanos, como o senador Rick Santorum, que foi candidato nas primárias de 2012, “abriu-se uma oportunidade para aqueles que são muito anti-ONU, que pensam que o seu apogeu já lá vai, não serve qualquer bom propósito, não ajuda governos legítimos e já ultrapassou o seu tempo de vida e a sua utilidade. Quanto mais pudermos desconstrui-la, melhor”, afirmou ao “Washington Post”.
Para este republicano, a atenção vai voltar-se para a ONU, mais do que para a NATO, que Trump classificou durante a campanha como uma organização “obsoleta”. “Vão ser tempos perturbantes, ruidosos. Com esta decisão, Obama causou mais danos à ONU do que a Israel”.
Se Donald Trump estará interessado em “desconstruir” a ONU ou apenas em reformá-la é uma incógnita que certamente não será esclarecida tão cedo.
Num outro tweet posterior à resolução sobre Israel, Trump é ambíguo: a ONU “tem um potencial tão grande, mas hoje é apenas um clube para as pessoas se encontrarem, conversarem e divertirem. Uma tristeza!”. Um juízo muito negativo sobre a realidade da organização, mas o reconhecimento de que tem potencial.
Irá o novo Presidente apostar nesse potencial e tentar que ele funcione a seu favor? Ou irá simplesmente desprezar as Nações Unidas, boicotando quaisquer iniciativas no mundo que careçam de apoio financeiro e político americano, paralisando a ONU? Se ceder às correntes mais conservadoras do Partido Republicano, a segunda opção parece óbvia.
As escolhas que fez para liderar a sua política externa apontam mais para a primeira opção. Um homem que não é um ideólogo – Rex Tillerson para secretário de Estado –, e para embaixadora na ONU uma mulher que é tida por pragmática – a governadora da Carolina do Sul, Nikki Allen. Nenhum deles, porém, com experiência em diplomacia política.
Mas seja qual for a estratégia de Trump para as Nações Unidas, os tempos não se adivinham fáceis para António Guterres, que na qualidade de secretário-geral tem obviamente que se bater sempre pela natureza multilateral da ONU, razão e propósito da sua existência. E neste aspecto qualquer das opções da nova administração americana surge como altamente danosa. Porque das duas, uma: ou a paralisia por falta de fundos e de relevância; ou a dificuldade em gerir um fórum multilateral com a principal potência a tentar torná-la activamente uma correia de transmissão dos seus interesses.
É neste cenário que Guterres entrou esta terça-feira no seu gabinete de Nova Iorque, num dia chuvoso e triste como que a prenunciar os tempos sombrios que o esperam. Por isso mesmo resolveu lançar um alerta, numa mensagem “urbi et orbi”, que sendo para a cidade foi obviamente para todo o mundo.