Há poucos dias, a advogada de Direitos Humanos Oleksandra Matviychuk esteve em Oslo para receber o Prémio Nobel da Paz, este ano tripartido entre um cidadão bielorrusso, uma organização russa e a ONG ucraniana fundada por Matviychuk, o Centro para as Liberdades Civis da Ucrânia.
Esta semana, passou por Estrasburgo para receber também, em nome do povo ucraniano, o Prémio Sakharov de Direitos Humanos. Foi à margem da cerimónia que falou com a Renascença.
Nesta entrevista, Matviychuk defende a criação de um mecanismo internacional de justiça para julgar os crimes de guerra na Ucrânia, à semelhança do que defendeu o Presidente ucraniano, Volodomyr Zelensky, na entrega do Sakharov, numa intervenção em vídeoconferência. E fala das consequências do trabalho de quem documenta este tipo de crimes.
Na semana passada, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, foi nomeado personalidade do ano pela revista "Time". Há poucos dias, esteve em Oslo para receber o Prémio Nobel da Paz. E agora está aqui, em Estrasburgo, para receber também o Prémio Sakharov. Infelizmente, prémios não ganham guerras, e por isso lhe pergunto: que trabalho desenvolvem?
Esta guerra tem várias dimensões diferentes e a dimensão militar é apenas uma delas. Temos também a dimensão dos valores, porque esta não é uma guerra entre dois Estados: é uma guerra entre dois sistemas, um autoritário e um democrático.
Todos os prémios e reconhecimentos não são dedicados a algumas personalidades, são dedicados ao povo ucraniano, que tem a coragem de defender a nossa escolha democrática.
Desde 2014, o foco de trabalho do Centro para as Liberdades Civis da Ucrânia tem sido documentar crimes de guerra, não trabalhar para a consolidação democrática do país – o propósito inicial da ONG, aquando da sua fundação em 2007. Como é feita essa recolha?
Construímos uma rede de documentadores locais chamada Tribunal de Iniciativa de Putin. Unimos dezenas de organizações que, durante anos, trabalharam apenas nas suas regiões, que têm alguma reputação e compreendem os assuntos correntes. Não recolhemos informação só de fontes abertas – mas quando o fazemos, verificamos sempre [essas informações].
Enviamos grupos de documentadores para áreas libertadas [da ocupação russa] para recolher testemunhos das vítimas. Se algo aconteceu, os documentadores locais vão ao terreno tirar as suas próprias fotografias, fazer vídeos e outras coisas. Utilizamos sempre fontes diferentes.
Apenas em nove meses de invasão russa, documentámos, em conjunto com algumas organizações locais, 27 mil crimes de guerra.
Por vezes, pergunto-me: Para que é que documentamos tudo isto? A documentação é apenas a primeira fase de uma investigação. É uma prova que se pode utilizar na investigação.
O sistema jurídico ucraniano tem capacidade para processar todos estes casos?
O sistema jurídico [da Ucrânia] está sobrecarregado com os crimes da guerra. De momento, a procuradoria-geral tem de investigar.... não me lembro do número mais recente... o último de que tenho conhecimento era de 42 mil crimes de guerra.
Tenho a certeza de que agora são muitos mais. É impossível investigar quando se está em guerra, até mesmo o melhor Ministério Público...
O Tribunal Penal Internacional limitará a sua investigação apenas a casos civis. Para mim, enquanto advogada de Direitos Humanos, pergunto-me: quem dará oportunidade de justiça a todas as outras vítimas que não serão selecionadas pelo TPI?
Falamos de centenas de milhares de pessoas, e todas elas merecem justiça, não apenas nalgumas categorias.
Para o fazermos, temos de elaborar uma estratégia de justiça complexa. E um dos elementos centrais desta estratégia é a criação de um novo mecanismo internacional que nos ajude a preencher esta lacuna de responsabilização.
Quais seriam as consequências práticas de começar já a julgar os crimes de guerra registados na Ucrânia?
Não devemos subestimar a importância de ações, mesmo que simbólicas.
Mesmo a preparação desses processos pode ter como efeito o congelar da brutalidade, de violações dos direitos humanos.
As pessoas que cometem estes crimes estão confiantes e acreditam que ficarão impunes. A criação de um mecanismo internacional passará uma mensagem clara: a de que quem agiu às ordens de Putin será responsabilizado.
E isto pode salvar vidas humanas.
Já houve casos de soldados russos condenados por crimes cometidos nesta guerra…
Sim. Temos o caso muito famoso de Vadim Chichimarine, acusado de matar o idoso Oleksandr Chelipov. Foi o primeiro julgamento em tribunal devido à invasão. Ele forneceu pormenores sobre o crime e foi condenado. Depois, recorreu e conseguiu com que a sua sentença fosse encurtada.
Mas o que quero enfatizar, a propósito deste caso, é outra coisa. Ouvi a esposa dele dizer: ‘O meu marido era um agricultor comum, mas ele era todo o universo para mim. Eu perdi tudo.’
Aquele crime foi investigado e alvo de discussão pública porque foi o primeiro julgamento em tribunal [por causa da guerra].
Pensei para mim própria: temos de fazer algo para dar uma oportunidade a outras vítimas de crimes de guerra, porque estamos a transformar as pessoas em números e só a justiça pode devolver às pessoas os seus nomes e a sua dignidade humana.
No processo de recolha de testemunhos, têm ajuda de cidadãos ou de organizações russas?
Durante décadas cooperámos estreitamente com defensores dos direitos humanos na Rússia. Quando a guerra começou, eles foram os primeiros a nomear o que estava a acontecer: uma guerra.
Eles [ativistas russos] trabalham connosco para ajudar os prisioneiros políticos ucranianos na Crimeia, na parte ocupada de Lugansk, na região de Donetsk. Fizeram muito… e é por isso que tantos defensores dos direitos humanos deixaram agora à força o país.
A Rússia é um sistema [político] muito capaz em si. Não tem empatia ou humanismo.
O problema desta guerra é que não é a guerra apenas de Putin. É uma guerra da nação russa, porque a maioria dos russos apoia esta guerra.
Putin governa a Rússia não só com repressões e censura. Tem governador a Rússia com um contrato social que se baseia na glória russa.
Infelizmente, os russos ainda veem a sua glória na restauração à força do império soviético.
Documentar crimes de guerra também terá consequências para os responsáveis por esse processo de investigação. No campo emocional, há um preço a pagar?
É muito difícil documentar crimes de guerra. Faço isto há oito anos e já vi muitas pessoas deixaram de fazer este trabalho por duas razões.
Primeiro, trabalha-se com a dor humana e é difícil. Todos nós pagamos o nosso preço por fazer este trabalho.
Não te direi o que sinto. Proibi-me de me fazer algumas perguntas. Quando os jornalistas me perguntam qual é o caso que mais me afetou, eu digo: ‘Desculpem. Neste momento, não me permito fazer este tipo de perguntas, pois, se o fizer, ficarei partida.’ Enfrentamos uma enorme quantidade de dor humana, documentamos coisas desumanas. É algo que não é de todo normal.
Segundo, há oito anos que fornecemos documentação, provas [da agressão russa], e a situação não mudou. É uma frustração enorme. Enviámos inúmeros relatórios para a União Europeia. Registámos histórias horríveis de espancamentos e torturas e sabemos que há outras pessoas a passar pelo mesmo. E não conseguimos impedi-lo.